terça-feira, 31 de março de 2009

Roy Ayers & Ramp: groove sofisticado

No seu mais recente lançamento discográfico, Erykah Badu utiliza um original dos RAMP, o Roy Ayers Music Project, para estabelecer o tom para a sua viagem musical logo à partida: “The American Promise”, tema de abertura de “Come Into Knowledge”, transforma-se em “Amerykhan Promise” para mostrar ao que vem a diva neo-soul: interessa-lhe redescobrir a vibração profunda e genuína de uma música que na segunda metade da década de 70 incorporava bagagem do jazz, utilizava ferramentas do futuro e desenhava uma sofisticada utopia de invenção rítmica e lírica. Badu, pois claro, dificilmente poderia ter escolhido melhor momento para se inspirar.
“Come Into Knowledge”, “Vibrations” e “Lifeline” são três faces do prisma Roy Ayers agora reeditadas na série Originals da Verve. Informado, por um lado, pelas experiências eléctricas de Herbie Hancock e Donald Byrd durante boa parte dos anos 70, e, por outro, pelos avanços que a música popular negra registou em idêntico período – do “psicadelismo” de Sly Stone e Norman Whitfield, ao equilíbrio da mensagem cantada com o groove tal como enunciado nos laboratórios da Motown por Marvin Gaye e Stevie Wonder – Roy Ayers assinou uma obra tão extensa quanto visionária que acaba, no melhor dos sentidos, por ser a perfeita definição da década dos afros e dos saltos de plataforma. E isto não implica que não tenha sobrevivido confortavelmente para lá das margens dessa década, conforme atestado não apenas pelo gesto de Erykah Badu no seu recente “New Amerykah: Part One (4th World War)”, mas também pela referência constante que esses trabalhos merecem por parte da internacional comunidade de djs que animam as pistas de dança mais interessantes.
Aspecto comum de todos os projectos com envolvimento de Roy Ayers é uma certa ideia de sofisticação presente nos arranjos e também uma recusa evidente de alinhar por um certo simplismo pop. As canções dos RAMP são bem sintomáticas nesse aspecto pois são elípticas em termos melódicos e há um certo mistério resultante do uníssono das vozes de Sharon e Sibel. E mesmo em termos líricos há por aqui ousadia em doses reforçadas – ouça-se “Give It”, expansivo momento de afirmação de uma liberdade sexual que, mesmo em 77, ainda era capaz de fazer corar melómanos mais reservados… Os RAMP gravaram apenas um álbum, mas a força de temas como “Come Into Knowledge”, “Give It”, “Daylight”, “The American Promise” ou o hino “Everybody Loves The Sunshine” faz desse solitário registo um clássico desmedido.
No mesmo ano em que Ayers produziu a estreia dos RAMP, o seu projecto Ubiquity editou “Lifeline”, outro portentoso registo de sofisticação e luz. Aliás, o “sunshine” é um elemento metafórico importante na música de Ayers e traduz uma ideia mais subtil do que a mera coloração dos títulos de canções como “Everybody Loves The Sunshine” ou “This Side of Sunshine”, que abre “Lifeline”: para Ayers esta era uma época de vibrante invenção para a música negra, que tinha conseguido um equilíbrio entre a pop e o jazz, a dança e a reflexão, o imediatismo e a sofisticação. Tal como “Come Into Knowledge”, “Lifeline” é um disco que opta sobretudo pelo midtempo, mas em temas como o clássico de clubes “Running Away” ou “Cincinatti Growl”, Ayers prova que sabe acelerar o passo e adaptar as suas “vibes” a uma música mais urgente e pulsante.
Antes de “Lifeline”, “Vibrations” foi o primeiro álbum na dobragem para a segunda metade dos anos 70: em faixas como “Come Out and Play” (com dedo de Edwin Birdsong), o pulso angular do p-funk dos Funkadelic (que já tinham editado um “best of” no ano anterior) informa as operações, injectando músculo num Roy Ayers que parece preferir registos mais “mellow”. Interessante é perceber – em “Vibrations” como em praticamente toda a discografia de Ayers na década de 70 – como o vibrafonista utiliza o estúdio e a orquestra à sua disposição como um único instrumento, extensão da sua personalidade e ferramenta ao serviço de uma visão que parece dedicar-se a fazer resumos da matéria dada na música negra que o rodeava. Em entrevista há um par de anos, Ayers revelava que praticamente vivia no estúdio nesta época e que possui muitas horas de material inédito resultante de uma apertada disciplina de criação. O material publicado nestes discos não possui portanto uma separação nítida, que identifique cada sessão como um momento de criação singular. Pelo contrário, de “Vibrations” para “Lifeline” e daí para os RAMP vai a linha de um constante “work in progress” que traduzia os mais subtis traços de evolução da música negra: do funk para o jazz de fusão e daí para o disco sound de vocação mais orquestral – tudo isto está presente nestes álbuns editados já há três décadas. Podem ter tido um comportamento comercial discreto, mas estes álbuns são marcos de um tempo em que a música negra tinha sede de futuro e o construía em cada linha de baixo, em cada novo som arrancado aos “moogs and arps and things” ou em cada reajuste do espaço conseguido com o processamento de uma voz com uma unidade de delay.


RAMP
Come Into Knowledge
Verve


John Manuel (bateria, percussão); Sharon Matthews (voz); Sibel Thrasher (voz), Nate White (baixo); Landy Shores (guitarra)
Nova Iorque e Los Angeles, 1977

Roy Ayers Ubiquity
Lifeline
Verve


Roy Ayers (vibrafone, piano eléctrico, sintetizadores); Chano O'Ferral (conga & percussão); William Allen (baixo); Philip Woo (piano, piano eléctrico, sintetizadores); Justo Almaro (saxofone tenor); Steve Cobb (bateria); John Mosley (trompete); James Mason, Glenn Jeffrey, Chuck Anthony & Calvin Banks (guitarras); Edwin Birdsong (piano).
Nova Iorque e Los Angeles, 1977

Roy Ayers Ubiquity
Vibrations
Verve


Roy Ayers (vozes, vibrafone, piano acústico e eléctrico, sintetizadores, percussão); Chano O'Ferral (conga & percussão); Chicas (vozes); Steve Cobb (bateria); William Allen (baixo); Philip Woo (piano, piano eléctrico, sintetizadores, harmónica); Justo Almaro (saxofone tenor); John Mosley (trompete); Edwin Birdsong (vozes, string ensemble); Bernard “Pretty” Purdie (bateria) James Mason, Glenn Jeffrey, Chuck Anthony & Calvin Banks (guitarras).
Nova Iorque e Los Angeles, 1976


(texto publicado originalmente na revista jazz.pt)

domingo, 29 de março de 2009

Terry Callier: Occasional Rain & What Color is Love


Terry Callier é o segredo que já todos ouviram, aquele tesouro que se gostaria de guardar, mas cuja partilha é irresistível. Os seus álbuns são banda sonora de mil e uma paixões e de outros tantos corações quebrados, talvez porque nele luz e sombra partilhem idêntico espaço.
Os dois álbuns agora incluídos na série de reedições da Verve Originals (ambos editados originalmente na fabulosa Cadet, a etiqueta que a Chess criou para lançar jazz) são provavelmente as peças centrais na discografia de Callier. Amigo de infância do grande Curtis Mayfield, Terry Callier começou por se natabilizar no circuito folk de Chicago, tendo editado em 64 o clássico «The New Folk Sound of Terry Callier», despojado exercício de canções onde a sua voz ocupava todo o espaço aural e emocional. O verdadeiro arranque da sua carreira viria uns anos mais tarde, precisamente com «Occasional Rain», álbum produzido pelo génio Charles Stepney, o homem por trás dos Rotary Connection de Minnie Ripperton. Stepney era um arranjador brilhante, capaz de combinar jazz, soul e psicadelismo como provavelmente só David Axelrod terá conseguido. Os seus arranjos são complexas peças de enorme espessura emocional, sempre em busca de soluções incomuns que não temem olhar para lá do contexto em que se inserem – mesmo a trabalhar com um cantor negro num cenário soul-jazz, Stepney não teme olhar para o country ou para a tradição operática europeia para inundar as suas canções de inesperadas texturas, facto que grita “liberdade” e ancora esta música numa época especial sem por isso a datar.
A escrita de canções nestes dois álbuns é absolutamente impressionante: «Ordinary Joe» (de «Occasional Rain») ou «What Color is Love» (tema título do segundo álbum aqui referido) são exemplos extremos de perfeito equilíbrio entre a interpretação arrebatadora de Callier, os arranjos, a execução dos temas e as palavras. «Occasional Rain» começa assim: «For my openin’ line / I might try to indicate my state of mind / or turn you on / or tell you that I’m laughin’ / just to keep from cryin’ / pretty music, when you hear it, /
keep on tryin’ to get near it / a little rhythm for your spirit / but that’s what it’s for / c’mon in here’s the door.» E nós entramos. Ou melhor, mergulhamos. Porque só há uma forma de estar na música de Terry Callier – em completa imersão.
«Is it wrong or is it right / is it black or is it white / what color is love? / is it here or is it there? Is it really everywhere? / what color is love?» Estas canções surgiram numa altura em que a cor de pele se tinha revelado o tónico de revoluções sociais e políticas, mas Terry Callier canta-as como se todas essas revoluções fossem íntimas, privadas e individuais. À sua volta, Stepney desenha um luxuriante jardim de cordas e harpas que parece agarrar-se a cada nuance da voz, a cada lágrima cantada. Depois vem «You Goin’ Miss Your Candyman», congas, uma guitarra e um baixo que ajuda a contar a história (e que soa familiar por ter sido samplado pelos Urban Species nos anos 90) do mesmo homem que os Temptations cantaram em «Papa Was a Rolling Stone» - parece mesmo não haver rosas neste jardim e tom é quase sempre sombrio, sofredor. Afinal de contas, Callier é um cantor de Chicago, terra dos blues e dos lamentos electrificados.
Terry Callier é um daqueles homens que foram redescobertos exactamente porque há segredos que são impossíveis de guardar. No início dos anos 80, este cantor abandonou a música para poder assumir a custódia da sua filha de 12 anos. Para a sustentar arranjou um emprego como programador de computadores na Universidade de Chicago. No final dessa mesma década, a atenção ao passado soul dada por Gilles Petterson na cena rare groove de Londres transformou os velhos álbuns de Callier em preciosas peças de colecção. No início dos anos 90 os convites começaram a aparecer para espectáculos em Inglaterra e, lentamente, Callier voltou à música, nunca abandonando no entanto o seu emprego regular. Em 1998, Terry Callier editou «Timepeace», o seu álbum de regresso na Talkin’ Loud de Gilles Petterson. O álbum mereceu um prémio das Nações Unidas e lançou indesejada atenção sobre a sua carreira musical, completamente desconhecida no seu local de emprego, facto que provocou o seu despedimento. Ficou, certamente, o mundo a ganhar…
Há um par de anos, em Montemor-o-Velho, Terry Callier cantou com a mesma alma que se sente em discos como «Occasional Rain» e «What Color is Love»: com um tom que por vezes o aproxima de Nina Simone e uma entrega que é completamente física, Callier é um daqueles cantores de excepção que não se podem ignorar. Em, 1972, ano da criação destes dois álbuns, Terry estava no mesmo patamar de Marvin Gaye, Curtis Mayfield ou Isaac Hayes – verdadeira voz de uma geração que então celebrava até a liberdade de manifestar tristeza. As canções íntimas de Callier – sobre corações despedaçados, amores desencontrados – são o resultado de uma capacidade única de contar histórias, mantendo-nos suspensos na narrativa exposta em cada verso, em cada respirar. Não há outra forma de nos relacionarmos com Terry Callier – só a rendição absoluta e a audição repetida destes álbuns serve. Ou tudo ou nada. Não há meio-termo.

Terry Callier
Occasional Rain
Verve


5/5

Leonard Pirani (piano); Charles Stepney (produtor, arranjador, harpsichord, órgão); Sydney Simms (baixo); Bob Crowder (bateria); Terry Callier (guitarra); Kitty Haywood (soprano); Minnie Ripperton (soprano); Shirley Wahls (contralto); Earl Madison (violoncelo).
Chicago, 1972


Terry Callier
What Colour is Love
Verve


5/5

Kitty Haywood, Shirley Wahls, Vivian Harrell (coros); Louis A. Satterfield (baixo); Karl B. Fruth, Leonard Chausow (violoncelos); Bobby Christian, Alfred Nalls, Fred Walker (percussão); Donny Simmons , Morris Jennings (bateria); Ethel Merker, Paul Tervelt (fliscorne); Phil Upchurch (guitarra); Terry Callier (guitarra e vozes); Cyril Touff (harmónica); Edward Druzinsky (harpa); Don Myrick (saxofone alto, flauta); Charles Stepney (produtor, arranjador, piano eléctrico). Elliot M. Golub , Everett Zlatoff-Mirsky , Irving Kaplan , Jerry Sabransky , Joseph Golan , Ruth Goodman , Sol Bobrov , Theodore Silavin , William Faldner (cordas).


(críticas publicadas originalmente na jazz.pt)

África Eléctrica # 23

Emissão número 23 construída em torno da compilação "We Love Afrobeat" da Comet Records. Inclui igualmente alguns desvios - de Kezyah Jones a Amadou & Mariam, Vieux Farka Touré, Antibalas e muito mais. Boa audição!

África Eléctrica # 23 - 1ª hora

África Eléctrica # 23 - 2ª hora

sábado, 28 de março de 2009

Jazz Bridges # 15: Sabu Martinez - El conguero

Dois registos perdidos de 1973 e 1978 reforçam a memória de Sabú Martinez, “conguero” de excepção que faleceu há exactamente 30 anos.


Poucas histórias ilustrarão tão bem o espírito desta coluna como a de Sabú Martinez, extraordinário percussionista que faleceu há exactamente três décadas, a 13 de Janeiro de 1979, na Suécia. Em 2008, a pequena editora sueca Mellotronen (que é na realidade uma loja que gosta também, de vez em quando, de lançar alguns discos) editou dois preciosos títulos que documentam bem o impacto que Sabú teve no país dos Abba: “Burned Sugar” e “Winds & Skins”, este último com Sahib Shihab, são registos de concertos e gravações na rádio nacional sueca que ocorreram em 1973 e 1978, respectivamente. “Winds & Skins” representa mesmo a última vez que o percussionista esteve em estúdio.
“El Barrio”, a zona hispânica do Harlem, em Nova Iorque, foi o berço de Sabú Martinez que aí nasceu em plena depressão americana, em 1930. Os primeiros anos de vida não trataram Sabú da melhor forma que então conheceu os rigores da fome e do desalojamento. Mas em 1941, o percussionista, que basicamente tinha aprendido a tocar na rua, começou a actuar profissionalmente com trios latinos, iniciando aí a sua carreira. Em 1944 rumou a Porto Rico onde teve a oportunidade de desenvolver a sua técnica e estudar de perto os ritmos dos Lecuona Cuban Boys, que sempre reclamou como uma influência primordial. Regressou aos Estados Unidos em 1948 para uma missão absolutamente histórica: substituiu o lendário Chano Pozo na orquestra de Dizzy Gillespie. Benny Goodman, em 1949, e Art Blakey, com quem manteve uma associação muito estreita até 1958 e com quem gravou a famosa sessão que deu origem a “Orgy in Rhythm”, foram outros marcos no arranque da sua carreira.
Com uma mão no mundo do jazz e outra firmemente agarrada ao universo latino, Sabú Martinez participou mesmo na gravação do primeiro mambo na América, com o trio de Joe Loco, facto de extrema importância que conduziu directamente até à electrizante cena boogaloo dos anos 60 que se transformaria na explosiva salsa dos anos 70. No documentário “Mambo to Hip Hop”, um dos músicos latinos entrevistados afirma acertadamente que a salsa não era um ritmo, mas “música cubana com uma atitude que só poderia ter nascido em Nova Iorque”. Nos “barrios”, o som da descarga latina foi acompanhando a evolução da sociedade, cruzando-se com o rhythm n’ blues nos anos 60 e com o funk que na libertária época dos 70s ergueu James Brown até ao topo da cena musical americana.
No final dos anos 50, quando as percussões latinas ainda eram associadas a imaginários mundos de vulcões e nativas semi-despidas, Sabú gravou três obras-primas da corrente exótica – “Palo Congo” para a Blue Note, “Safari” para a RCA e “Sorcery” para a Columbia. Só os títulos já denunciam o que ia na cabeça dos A&Rs de cada uma dessas editoras, mas tirando o charme datado e meramente oportunista das capas, o que se descobre no interior é uma real vontade de alargar as fronteiras do legado latino, cruzando-o com as mais diversas latitudes. Como consequência desta generosa atitude, Sabú editou em 1960 o fabuloso “Jazz Espagnole” (disponibilizado o ano passado numa reedição da Alegre), efectiva e imaginativa ponte entre dois mundos, onde a criatividade bop surge pontuada por uma pesada secção rítmica.
Como tantos outros músicos no mundo do jazz, Sabú também teve um grave problema com drogas na transição dos anos 50 para a década de 60, facto que o levou a afastar-se para Porto Rico, primeiro, e para a Suécia, em 1967, país em cuja cena musical se integrou activamente, não sem acusar esse destino de acolhimento de um certo racismo que o fez mudar-se de cidade com frequência. Na Suécia, Sabú Nartinez tocou com o Radio Jazz Group de Estocolmo e formou os New Burnt Sugar, levando ainda as suas congas a marcarem presença em inúmeras sessões – de jazz, mas também de funk e até de rock. O álbum “Burned Sugar” é uma pérola dessa época: com as participações de Mr. X no baixo, Stephan Möller na bateria, o polaco Wlodek Gulgowski nos teclados e ainda Bernt Rosengren no saxofone e flauta, este é um aventureiro registo que incorpora marcas do funk, do jazz, das estratégias de fusão que marcavam a época, mas também de algum do carácter mais angular e experimental do krautrock. “Winds & Skins”, a outra reedição da Mellotronen, é igualmente espantoso – Sahib Shihab soa absolutamente incendiário em sax eléctrico (!!!) e Sabú transporta a tradição para o futuro com a inclusão de dois dos seus filhos na sessão. Ivan Krillzarin e Daoud Amin (dois músicos que tocaram com John Tchicai, por exemplo) completam o arsenal de uma data a todos os títulos histórica que em boa hora Stefan Dimle da Mellotronen reencontrou nos arquivos da rádio nacional sueca.
Martinez percorreu um longo caminho, das ruas do Harlem até à Suécia e mais além, chegando a tocar com os Rhythm Combination & Brass de Peter Herbolzheimer. E tal percurso só se pode efectuar quando o desejo de aventura supera qualquer outra vontade.

(Texto publicado originalmente na revista jazz.pt)

quinta-feira, 26 de março de 2009

Blitz # 34


Mais um número da Blitz, amanhã nas bancas. Entre variadíssimas outras coisas, como podem perceber pelas chamadas de capa, penso que interessará particularmente aos leitores do one for the treble, two for the bass o artigo de evocação da edição do primeiro maxi de hip hop, há 30 anos. Fica aqui um par de parágrafos para aguçar o apetite.


30 anos a arranhar o vinil

O rap era este: «O que tu ouves não é um teste, estou a rimar com a batida / E eu, o groove e os meus amigos vamos tentar fazer-te mexer os pés». Tão estranha era a novidade musical que era necessário esclarecer logo no início de «Rapper’s Delight» por que razão estava um tipo a falar em vez de cantar em cima de um tema disco sound bastante familiar. Para se ter uma ideia da peculiaridade de tal anúncio imagine-se se Chuck Berry ou Johnny Burnette, pioneiros da distorção nas guitarras, tivessem cantado algo como «o que tu ouves não é ruído, estou a tocar guitarra eléctrica distorcida»… A borbulhar no Bronx durante pelo menos meia dúzia de anos antes de «Rapper’s Delight» ser editado, o hip hop tinha agora um veículo que lhe permitiria muito rapidamente ultrapassar as fronteiras do seu South Bronx natal e impor-se como o verdadeiro som de Nova Iorque e da América. «Em 1979, os b-boys e as b-girls receberam um enorme choque», escreveu David Toop no seminal Rap Attack. «Aparentemente vindos de lado nenhum, dois singles foram editados e levaram o hip hop até ao público». Toop, cuja primeira edição de Rap Attack em 1984 o coloca bem próximo do arranque de toda esta história, referia-se a «Rapper’s Delight», claro, mas também a «King Tim III (Personality Jock)» dos Fatback Band.
As incontáveis análises históricas publicadas sobretudo nas últimas duas décadas deixam bem claro que o hip hop teve um nascimento localizado no Bronx, mas não surgiu de geração espontânea: antes dos primeiros discos assumidamente hip hop serem editados, as festas comandadas por pioneiros como Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash socorriam-se de uma enorme variedade de sons e ritmos – rock, jazz, funk, descargas latinas, new wave, electrónica kraftwerkiana ou disco sound eram coordenadas possíveis em qualquer dj set de qualquer block party. E quando um MC subia ao microfone poderia debitar uma lenga lenga inspirada nos recreios da escola («i said a hip hop the hippie the hippie to the hip hip hop, a you dont stop / the rock it to the bang bang boogie say up jumped the boogie to the rhythm of the boogie, the beat») ou ligar-se a uma longa tradição de rimas sincopadas que tinha nítida linhagem africana e raízes na soul (os famosos raps de Isaac Hayes), no rhythm n’ blues (Bo Diddley a fazer canções a partir das «dozens», rimas muito populares nas prisões) ou nas estações de rádio. David Toop dá um exemplo: «Um dos primeiros disc jockeys negros na rádio, Dr Hep Cat, abalava ouvintes da KVET em Austin, no Texas, com as suas rimas malucas: “If you want to hip to the tip and bop to the top / You get some mad threads that just won’t stop”».
«King Tim III (Personality Jock)» anunciava de facto a chegada de um novo som, mas era uma obra completamente diferente de «Rapper’s Delight»: em primeiro lugar, o rap de Tim Washington era típico dos djs de rádio, uma série de frases pensadas para injectar ânimo numa audiência, e o tema era puro disco, uma jam de mais de seis minutos tocada pelo elevado grau de groove que normalmente definia os temas dos Fatback Band. «Rapper’s Delight» era nave de outra galáxia.

Waxpoetics # 34


Graças ao Atento Brother Funkula do fórum Hitdabreakz. Vem aí uma "jazz issue" da Wax Po e pergunto-me se terá conteúdo relacionado com Portugal? Hum...

Uriel Jones RIP

E assim os Funk Brothers vão desaparecendo: Uriel Jones, baterista, tal como Richard "Pistol" Allen, no colectivo que assegurou a sólida base em que assentaram muitos dos hits da Motown, faleceu no passado dia 24 de complicações surgidas após um ataque de coração. Uriel Jones tinha 74 anos e deixa família, incluindo mulher e três filhos.
Uriel tocou em incontáveis sessões da Motown, mas o seu estilo permitiu-lhe encaixar-se no processo de modernização que conduziu a Motown ao período Psychedelic Soul liderado por Norman Whitfield e pelos Temptations. Ao lado de Dennis Coffey, Jones gravou, por exemplo, "Coud Nine", dos Temps, pedaço de verdadeiro céu que ajudou a soul a encontrar-se com os tempos que então corriam. No ano em que se comemoram cinco décadas sobre afundação da Motown, fica a certeza de que a música que Uriel ajudou a criar estará viva por muito mais tempo.



Sessão realizada em 2008 onde Uriel Jones ainda participou (tal como Dennis Cofey).



O clássico "Cloud Nine" dos Temps.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Workshop de diggin': Crew Hassan, 18 de Abril

Há pelo menos 25 anos que me desvio do meu caminho para procurar discos - em lojas de móveis em segunda mão, armazéns, casas de particulares, garagens, lojas de electrodomésticos, antigos estúdios de rádio... neste tempo todo, até em lojas de discos procurei saciar esta inexplicável sede de vinil que é também, penso, uma sede de compreender e conhecer tanta música quanto seja humanamente possível.
Entretanto, formou-se toda uma cultura em volta da procura dessas rodelas de plástico negro - o hip hop usa-o como combustível para os samplers, os djs procuram no passado argumentos que lhe permitam distinguir-se da horda de debitadores de mp3 e os coleccionadores procuram os tesouros sempre elusivos que sabem existir mas que desconhecem onde se encontram. Eu também faço rádio e escrevo e o diggin' encaixa-se na perfeição nestas actividades norteadas pela música - melhora os meus programas de rádio, informa permanentemente a minha escrita. Escrevi longamente sobre esta actividade em revistas como a Op. ou no blogue hitdabreakz. Recentemente comecei nova aventura aqui mesmo, no one for the treble, 2 for the bass, e, uma vez mais, o vinil e as histórias que o rodeiam são o principal prato do menu.
E agora chega a hora de encontrar outros interessados pela mesma actividade num workshop onde se falará de vinil, onde se contarão histórias e onde se revelarão dicas que poderão ser muito úteis na próxima expedição de procura de discos. As infos estão no flyer acima. Apareçam!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Tributo a Eddie Bo



Mix de homenagem ao grande Eddie Bo da autoria de Second Line Social.

Eddie Bo - From This Day On (Seven-B)
Roy Ward - Horse with a Freeze (Seven-B)
Art Neville - Hook, Line & Sinker (Instant)
Eddie Bo - S.G.B. (Seven-B)
Roger & The Gypsies - Pass The Hatchet (Seven-B)
Candy Phillips - Timber (Atlantic)
Eddie Bo - Falling In Love Again (Seven-B)
Eddie Bo - Shake, Rattle & Soul (Cinderella)
Eddie Bo - Hook & Sling (Scram)
James K. Nine - Live It Up (Federal)
Eddie Bo - Check Your Bucket (Bo-Sound)
Sonny Jones - Sissy Walk (Scram)
Eddie Bo & Inez Cheatham - Lover & A Friend (Seven-B)
Chuck Carbo - Can I Be Your Squeeze (Canyon)
The Vibrettes - Humpty Dump (Lujon)
Eddie Bo - We're Doing It (The Thang) pt. 2 (Bo-Sound)
Mary Jane Hooper - I've Got Reasons (Power)
Chris Kenner - Cinderella (Instant)
Eddie Bo - Fence of Love (Seven-B)
Barbara George - Something You Got (Seven-B)
Eddie Bo - Every Dog Got His Day (RIC)
Oliver Morgan - The La La Man (Seven-B)
Eddie Bo - Check Mr. Popeye (Swan)
Oliver Morgan - Roll Call (Seven-B)
Bobby Williams Group - Boogaloo Mardi Gras (Seven-B)
Betty Taylor - I'm Going Home (Nola)

From This Day On... A Tribute Mix to Eddie Bo: New Orleans Legend

Chris Read: The Diary Volume 1.5

Chris Read, o homem que se atreveu a colocar 800 temas de hip hop por ordem cronológica numa mix a todos os títulos histórica, tem nova mix na página da Music Of Substance. Desta vez, a tarefa não é menos grandiosa - Chris Read remistura uma faixa de cada um dos últimos 20 anos de história de hip hop, mas com a subtileza adicional de adaptar em cada um dos casos o estilo de produção em vigor na época em que o original foi editado. Dizem eles:

One iconic hip hop track from each of the last 20 years, remixed paying tribute to the prouction style and sampling trends popular at the time of the original release. From the James Brown influenced style of the late 80s, to the jazz sampling trends of the mid '90s, to the iconic and distinct sounds of DJ Premier and Jay Dee, all the cornerstones of the genre's development are touched upon.


Tarefa grandiosa, de facto. Eis o que alguns notáveis têm a dizer:

"This CD just shows how much Chris Read knows about historic Hip Hop production techniques - It's just a shame he wasn't producing this stuff during the eras that he's covering as we would probably rate the man as being up there with Paul C, Pete Rock, Premier and all! - I can't think of another Hip Hop CD I've played so much in years!" (Andy Smith - Portishead)

"Chris continues the rap anthology concept of his super-dope 'The Diary' megamix in the shape of a remix project, re-lacing acapellas from 89-2009 with historically accurate beats. 'The Diary 1.5' serves as a great platform for Chris to showcase his ample beat-making skills whilst referencing those who've inspired him." (DJ Woody – Former World ITF Champion)

"Crazy! This is Rap History in the making. Chris proves his production skills on this one to the fullest. A wonderful and refreshing journey through all eras of hip hop. Double thumbs up!" (Marc Hype – MPM Records / Former ITF Champion)


Chris Read - The Diary 1.5

Chris Read - The Diary (World's Greatest Rap Megamix)

domingo, 22 de março de 2009

Eddie Bo rip

Eddie Bo foi funkar para outro planeta. Paz ao seu espírito.

Singer-pianist Edwin Joseph Bocage, known to fans and those in the New Orleans music industry simply as Eddie Bo, died Wednesday of a heart attack. He was 79.
Bocage's death was confirmed Friday by his close friend and booking agent, Karen Hamilton.
Hamilton said Bocage had a "sudden, massive heart attack" while out of town Wednesday.

Jazz Bridges # 14: Hip hop loves jazz

O hip hop e o jazz são duas culturas muito distintas, mas que partilham muito mais do que a mesma nacionalidade.


A reflexão sobre a linha que liga o jazz ao hip hop talvez seja o subtexto mais constante desta coluna. Desde o já longínquo texto sobre David Axelrod até ao artigo sobre a compilação “Droppin’ Science” da Blue Note, passando pelos olhares lançados sobre Madlib e Donald Byrd, tem importado por aqui analisar essa porta de entrada na memória do jazz que o hip hop nitidamente oferece. Mas como é mais do que óbvio, o jazz não é apenas memória e o hip hop até tem contribuído para que não seja matéria de museu, provocando muito provavelmente acesas discussões nos jantares de Natal do clã Marsalis, quando Wynton e Branford se sentam à mesma mesa. Sobre o vibrante presente tratam muitas das páginas que se seguem, e aqui na Jazz Bridges quando se espreita o calendário actual é quase sempre para perceber como foi afectado pela memória – ou memórias, não há apenas uma… - de uma determinada escola da história do jazz.
O jazz importou ao hip hop desde o início. Como o bop no particular microcosmos da Minton’s Playhouse, também o hip hop beneficiou de um nascimento em “circuito fechado”, nas festas de um destroçado Bronx dos anos 70 onde o disco sound que abalava as estruturas de Manhattan foi despido de todo o seu glamour até ao osso rítmico que traduzia urgência, vigor, orgulho e isolamento. O hip hop estreou-se em vinil em 1979, mas os primeiros passos estéticos foram dados com bandas em estúdio a emularem o gesto repetitivo dos djs. Só quando os primeiros samplers se tornaram amplamente disponíveis no mercado, a partir de 1987, é que se ergueu a figura do produtor e as aproximações ao universo do jazz começaram a ser regulares.
Como é óbvio – e para lá da discussão dos direitos de autor, que aliás pode nem fazer sentido no contexto de uma linguagem que também se ergueu a reinventar peças alheias – a questão da apropriação do jazz pelo hip hop é, sobretudo, cultural, por muito que isso custe ao senhor Wynton.
Quando os produtores pioneiros levaram para casa samplers como o SP1200 da EMU, os primeiros discos onde procuraram excertos para animar as suas criações eram os que existiam disponíveis no lar paterno. E se o código postal do produtor em questão o situava num dos “boroughs” negros da Nova Iorque dos anos 80, o mais natural era que entre as colecções herdadas dos progenitores se encontrassem títulos reveladores da sua identidade pós-Civil Rights Movement: o soul de Aretha, o funk de James Brown e Sly Stone, o proto-disco das produções de Gamble & Huff efectuadas a partir de Filadélfia, as canções de protesto ritmicamente sofisticadas dos O’Jays (“Back Stabbers”) e dos Temptations (“Message From a Black Man”), mas também, claro, uma alargada selecção do jazz que tocava nas rádios: Miles e Lou Donaldson, Cannonball Adderley e Donald Byrd, Herbie Hancock, Jimmy Smith, Grant Green e até, talvez, num lar mais “aventureiro”, um pouco de Coltrane, Yusef Lateef, Pharoah Sanders ou Eric Dolphy.
O jazz atraiu os produtores logo desde o primeiro momento: em 1988, os Gang Starr de Guru samplavam Charlie Parker em “Words I Manifest” e os Stetsasonic apoiavam-se em Lonnie Liston Smith para construir “Talkin’ All That Jazz”. A tendência acentuou-se com a entrada nos anos 90, descobrindo o hip hop de recorte “jazzy” um natural aliado na corrente “acid jazz” nascida em Londres. Não se pense, no entanto, que a ligação do hip hop ao jazz era meramente oportunista e facilitada pela tecnologia que permitia pegar numa frase de piano de Herbie e repeti-la sobre um padrão rítmico de Bernard “Pretty” Purdie. O fascínio do jazz era mais fundo – se um lado do hip hop é programado e calculado – o do suporte rítmico – outro há que apela à invenção: o freestyle do MC favorece a livre associação de ideias, a ginástica com a sintaxe, um pouco como acontece quando um solista de jazz desenvolve a ideia contida num standard. O scratch do DJ também reforça essa ligação ao espírito do jazz: Herbie Hancock nos anos 80 chamou aliás Grandmixer DST para o álbum “Future Shock” e fez dele uma peça central nos seus espectáculos ao vivo, passo “exótico” à época, mas hoje perfeitamente normal – são já muitos os ensembles de jazz que integram manipuladores de gira-discos.
Duas décadas após as primeiras abordagens ao jazz por via do sampler, e depois de incontáveis voltas que viram o hip hop transformar-se numa cultura e num negócio de escala global, as ligações entre as duas correntes continuam fortes. Disso mesmo deu conta no número passado da Jazz.Pt Alberto Mourão na sua recensão crítica ao álbum do projecto nacional Rocky Marsiano, que traduz uma tendência de sincretismo recente que procura a ultrapassagem do mero plano do sampling para a interacção directa com músicos que ajudam assim o hip hop a descolar do plano da citação para o mais interessante desafio da criação e da invenção. O projecto Liquid Crystal do produtor de hip hop J Rawls, as Sound Directions e o Yesterdays Universe de Madlib e, sobretudo, “Clin d’Oeil”, álbum recente de um trio de produtores franceses que recupera a iconografia da editora norte-americana Black Jazz e convoca para estúdio músicos franceses e MCs americanos para o mais entusiasmante momento de regresso à intersecção da matéria-prima jazz com a perspectiva hip hop, são sinais claros de que a cultura nascida no Bronx continua interessada no som da liberdade pura.

(texto publicado originalmente na revista jazz.pt)

sábado, 21 de março de 2009

Rip it up # 3: The J.B.'s International - Nature (Pt. 1)/Nature (Pt. 2)

Na década de 70, James Brown não conquistou o título de "hardest working man on showbusiness" por dá cá aquela palha: para contornar contratos ou simplesmente para canalizar toda a sua energia, Brown desmultiplicou-se em variadíssimos projectos e a dado ponto era até impossível distinguir os discos que assinava na capa daqueles que "simplesmente" produzia. E o seu "gang", os J.B.'s, assumiu-se como grupo em permanente mutação para poder responder às exigências do líder. Banda construída em torno de notáveis como Bootsy Collins, "Catfish" Phelps, Bobby Byrd, "Jabo" Starks ou da fantástica secção de metais formada por Maceo Parker, Fred Wesley e Pee Wee Ellis, os J.B.'s assumiram muitos nomes - Fred Wesley & The J.B.'s, Maceo and the Macks, Fred and the New JB's, The James Brown Soul Train, The Last Word, The First Family e, claro, os J.B.'s International que hoje aqui trazemos.
Com data de 1977 e selo da Brownstone, label criada pelo próprio James Brown e por Henry Stone da fabulosa T.K. Records, este single é mais uma poderosa amostra daquele groove que só esta máquina parecia saber produzir: mais tight do que os collants do Robim dos Bosques, mais sinuoso do que uma estrada de montanha, mais infeccioso do que uma doença venérea. Bom download!

The J.B.'s International - Nature (pt. 1)

The J.B.'s International - Nature (pt. 2)

sexta-feira, 20 de março de 2009

Harmonic 313: new step

Mark Pritchard dificilmente terá na memória todos os seus "akas" e projectos paralelos, tal a dispersão da sua actividade. A sua mais recente "encarnação" leva o nome de Harmonic 313 evolução para uma aventura a solo do duo Harmonic 33 que mantinha com Dave Brinkworth. 313 é também o indicativo telefónico de Detroit e um sinónimo para Motor City, como muito bem saberão todos os que tenham visto "8 Mile". E Pritchard inclui neste álbum uma participação de dois mcs de Detroit - Elzhi e Phat Kat, dois nomes com ligações ao universo de Jay Dilla - sinal claro de que a sua bússola estética está orientada para essa grande cidade. E de facto, "When Machines Exceed Human Inteliggence", estreia de Harmonic 313 na Warp, tem qualquer coisa do mesmo carácter mecânico dessa cidade que animou boa parte da produção techno aí realizada. Em projectos como Troubleman, Pritchard explorou as suas ligações à soul, mas com Harmonic 313 parece ser o espírito das máquinas que o atrai. E o carácter denso e negro do dubstep acaba por informar boa parte das suas composições. O álbum é uma fantástica amostra do que se consegue extrair das máquinas quando por trás existe alguém com um oceano de referências e uma imaginação criativa aparentemente inesgotável.
Recentemente, e para assinalar a edição de "When Machines Exceed Human Intelligence", Pritchard preparou uma mix para a revista Fader. (A Fader tem um monte de conteúdos descarregáveis, por isso não se detenham apenas nesta mix).

Freeload: Harmonic 313 Mix

You know a new day is dawning when beards trade in their Vetiver albums for dubstep radio rips and stuff like Flying Lotus. Harmonic 313 aka Sydney, Australia's Mark Pritchard whipped up this mix to promote his new When Machines Exceed Human Intelligence LP coming out March 3rd on Warp, and it will certainly sate that same crowd with a bunch of pan-heavy, sloppy vibery. After getting over the Donkey Kong insanity that starts it off we fully settled into the crater in the FADER couch and zoned out for a solid two hours. Then we got fired. Then we got rehired at a lower salary. But hey at least we have the music! Check for Harmonic 313 at Deviation with BBC1 Xtra's Benji B the day after his album drops, play a video game on his website to get an unreleased track, and check the mix's tracklist after the jump.

Download: Harmonic 313 Mix

1 Harmonic 313 lab ident – Harmonic 313 – Warp records
2 Battle valley – (Harmonic 313 edit) – Jeroen tel & Christian Huus – 1989 Vibrants
3 Motherfuckeeeeer – Slugabed – Stuff Records
4 Cyclotron – Harmonic 313 – Warp records
5 Ab – original – Flying Lotus - Cdr
6 Polkadot Blues – Hudson Mohawke – Warp records
7 Fort teen – Dorian Concept – Kindred Spirits
8 No way out (remix) – Harmonic 313 – Warp records
9 Konotakosuke – Dizz 1 – Cdr
10 Shangrila – Floating point - Cdr
11 Music Substitute System – Harmonic 313 – Warp records
12 Zappity Zip Zip - Danny breaks – Alphabet Zoo records
13 Dilla beat - Jaydee
14 Dutty – Harmonic 313 – Warp records
15 Battlestar feat Phat kat and Elzhi (Remix clean)- Harmonic 313 – Warp records


Harmonic 313 Mix

quinta-feira, 19 de março de 2009

Black Merda na Vampi Soul

Se algum dia se cruzaram com um artigo entitulado Merda Revisited e não coraram então é porque já conhecem a história dos Black Merda (pronuncia-se "black murder"): grupo de rock negro de Detroit (só podiam mesmo ser de Detroit, cidade dos Stooges, dos MC5 e da Motown) que há alguns anos foi redescoberto por Dante Carfagna e revelado através da enorme compilação Chains and Black Exhaust. O culto entretanto cresceu e o grupo está de regresso ao activo com a benção da Vampi Soul. "Force of Nature" é o apropriado título do novo álbum.
Da página da vampi Soul:

Black Merda (pronounced Black Murder), the first all black rock band to write and play their own music in the late 1960s and early 1970s, are considered to be Black Rock pioneers as well as the originators of their own style of Black Psychedelic Rock.
They released two albums in the 1970's "Black Merda" (Chess 1970) and "Long Burn The Fire" (GRT 1972) which weren't properly promoted when first released, but are now seen as Black Rock classics by a growing number of international music fans. Their 2005 release "The Folks From Mother’s Mixer" (Funky Delicacies 2005) containing both of 1970s albums on one CD, is lauded as the most creative, lyrically and musically diverse albums of that genre.

Now they're back! Like the Phoenix from its ashes! and the Butterfly from its cocoon, spreading their wings in the 21st century, funkier and musically diverse as ever, with a new batch of songs, to take you on a magical musical trip, that'll have your heads and minds bouncing and tripping, in some new directions and happy positions.
So sit back, and relax, and enjoy the Funk-Rock majesty of Black Merda's "A Force Of Nature".

Tracklist:

1. Can't Get Enough Of The Funk
2. Let Go
3. Maintain
4. Stop The War
5. 18 For 20 Year
6. Miss Hawkins' House
7. My Inspiration
8. The Solution
9. Take A Little Time
10. I'm Not Coming Back
11. Get On The Same Road
12. Beautiful Thing

quarta-feira, 18 de março de 2009

África Eléctrica # 22

O angolano Bonga é o primeiro artista africano a ouvir-se nesta 22ª emissão de África Eléctrica que também passa por Moçambique com os Ghorwane. Podem ouvir esta emissão todas as semanas (segunda para terça, por volta da uma da manhã) na frequência da RDP África. Boa audição: feedback é bem vindo.

África Eléctrica # 22 1ª hora

África Eléctrica # 22 2ª hora

Op. # 27 nas bancas

Já está disponível por aí o novo número - 27º - da revista Op. com duas capas, como sempre. Além de Kanye West há também a possibilidade de adquirir este número com uma capa dedicada ao escritor George Steiner.
A revista vem muito bem recheada e inclui artigos sobre a Motown, Ken Vandermark, Steinski, Tom Zé e muito mais em 76 páginas plenas de informação e pensamento. Pode tardar a Op., mas não falha.

domingo, 15 de março de 2009

LX Taster 2009: Dia 4 - o que fica?


Terminou hoje a odisseia LX Taster 09 e terminou da melhor maneira: com uma festa em dia de sol, barbecue de sabores sofisticados, dj sets de música inundada de soul e com a audição de trabalho realizado. Há muitas conclusões passíveis de serem retiradas desta iniciativa da Red Bull Music Academy: existe talento em portugal, existem pessoas capazes de alimentar uma visão destas, existe matéria prima para a construção de um presente e de um futuro. E isso levanta questões: como seria se Lisboa dispusesse de um espaço assim onde produtores se pudessem cruzar com MCs e onde DJs pudessem interagir com músicos, com cantores, com quem agita pistas e consciências e caixas de sub-graves? Durante quatro dias a resposta foi dada com estrondo: seria fantástico! Tamin a cantar para Bonga ou Mulatu a abraçar um emocionado DJ Ride ou Ty de cabeça baixa, de pé e de braços abertos perante uma plateia sôfrega de experiência, ou Rão Kyao a tocar corações e Deadbeat a ilustrar a ciência das baixas frequências, ou a agitação em corredores, junto de teclados e samplers e gira-discos - tudo isto marcou esta segunda edição de LX Taster que deixa pistas para um enorme futuro. Viver estes quatro dias foi quase viver um sonho acordado. Mal posso esperar pela próxima edição!

sábado, 14 de março de 2009

LX Taster 2009: Dia 3 - Mulatu, Ty


Ainda se sente a excitação no ar: no segundo dia do taster viajou-se de Lisboa à Índia, do Canadá e de Detroit até Berlim, e de Luanda até Lisboa uma vez mais, completando-se um circulo de histórias que ligaram Rão Kyao, Deadbeat e Bonga a uma mesma vibração superior.
Kyao mostrou o sopro da vida e falou ao coração e à alma de todos os presentes, Deadbeat assumiu o amor pelas baixas vibrações e foi mais cerebral e Bonga... bem, Bonga foi Bonga: cantou, tocou, dançou, ensinou, comoveu-se, ouviu declarações de amor, fez um dueto e até improvisou um pouco por cima de Buraka Som Sistema. Ponto alto do dia, sem a menor sombra de dúvida.
Para o terceiro dia perfila-se mais uma mão cheia de emoções fortes. Mulatu Astatke desafiou os produtores presentes a remisturarem um dos seus temas e a noite foi longa para alguns beatmakers que vão querer certamente mostrar o resultado do seu trabalho ao mestre do "ethio jazz", que ontem falava com o entusiasmo do facto de ter descoberto alianças históricas entre a Etiópia e Portugal, no século XV. Ty, o homem de "Upwards", grande MC inglês, trará igualmente a sua vasta experiência até ao sofá deste LX Taster que promete mais um dia preenchido de música, ideias, palavras e sons.

sexta-feira, 13 de março de 2009

LX Taster 2009: Dia 2 - Rão Kyao, Deadbeat e Bonga

Segundo dia de taster e tudo vai bem: o sol brilha, as disposições são fantásticas, a comida é incrível. Tive a honra de me sentar este ano pela primeira vez como "host" no sofá deste Taster com o senhor Rão Kyao, para uma lecture que será certamente lembrada por muitos anos por todos os que tioveram o prazer de assistir. Cá fora os participantes confessavam ter sido tocados no coração. De uma modéstia desarmante para quem tanto fez e conhece (e para quem tanto conquistou: Rão Kyao foi o primeiro português a ser galardoado com um disco de Platina em Portugal no tempo em que a platina ainda significava vendas generosas!), Rão conquistou a alma de todos os presentes, tocou flauta, mostrou música de quem o inspirou (ouvir Yusef Lateef em 1960 a tocar ocarina foi um grande momento), ouviu uma remistura de Kaspar para um tema seu, aplaudiu, comoveu-se ao evocar Carlos Paredes e conquistou uma nova plateia de fãs. É por causa destes momentos que a RBMA é um evento tão especial. Ainda há mais pela frente no dia de hoje: Deadbeat e Bonga serão os senhores que se seguirão neste segundo dia de Taster. Mais novidades ao longo do dia.

quinta-feira, 12 de março de 2009

LX Taster 2009: It's just begun

Imagino que a cacofonia que se desprendia do famoso Brill Building fosse muito diferente (não deviam existir por lá MPCs, nem Moogs ou Technics 1210...), mas a vibração deveria ser semelhante: 50 talentos do lado mais electrónico da nossa música (já por cá vi DJ Ride, Violet, Mushug, Kaspar, Infestus, Gino, Mr_Mute e muitos outros agitadores de sons e samples, de grooves e ritmos) ocupam agora os espaços laterais de uma imensa rotativa que preenche uma nave inteira na Lx Factory. Dispostos por três pisos diferentes estão máquinas diversas, espaços para troca de ideias, computadores, livros. Se é fábrica de alguma coisa, neste momento, este edifício que recebe o LX Taster é fábrica de potencialidades. Vão certamente sair daqui alianças criativas, colaborações e cumplicidades que um dia destes vamos estar a partilhar em MP3 ou até a comprar em vinil. É esperar para ver. Entretranto, Bonga, Rão Kyao, Deadbeat, Ty, Mulatu e Patrick Pulsinger farão a ponte entre este recanto de Lisboa e o resto do universo de sons que se estende lá fora.

LX Taster 2009

Arranca hoje em Lisboa mais uma edição do LX Taster onde terei o prazer de estar a colaborar. 50 participantes que representam algumas das mentes mais musicalmente agitadas do nosso país estarão presentes num incrível espaço para partilhar, aprender e ensinar, para, sobretudo, sorver uma experiência que é única no nosso país. O espírito Red Bull Music Academy está, de novo, em Lisboa. Conto ir comunicando por aqui - assim o tempo o permita - todas as histórias dignas de registo. Esta edição estende-se até domingo e tem a participação de lecturers de respeito. Saibam tudo aqui. E mantenham-se ligados.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Kutiman a remisturar o YouTube



Próximo nível do diggin'? Ainda recentemente Sam the Kid me dizia numa entrevista que já tinha samplado coisas directamente do YouTube, algo que, tenho a certeza, já muitos produtores armados com um sampler fizeram, mas Kutiman acaba de levar a ideia ao extremo com o projecto Thru You. Este produtor israelita já tinha deixado o seu talento muito claro numa série de interessantes lançamentos, mas esta é uma ideia absolutamente brilhante - colagem de fontes dispersas - sonoras e visuais ao mesmo tempo - disponíveis no tão conhecido YouTube. Como é óbvio é necessário um pensamento de orquestrador para imaginar como se podem ligar todas estas performances dispersas e Kutiman revela ter o que é necessário para cumprir tal propósito. Divirtam-se!

Na sombra de Fela

O duplo CD (que em vinil se traduz em quatro apetitosas rodelas) “Nigeria special: modern highlife, afro sounds & nigerian blues 1970-76” representa o mais alto momento do catálogo da Soundway de Miles Cleret. A perspectiva nómada deste arquivista já o conduziu do Ghana ao Panamá e do Benim à Colômbia, paragens que renderam sempre excelentes compilações. A expedição dirigiu-se desta vez à Nigéria do período compreendido entre 1970 e 1976, época dourada de Fela Kuti que a partir da sua Kalakuta Republic em Lagos lançou uma série de ritmadas bombas políticas: “Why black man dey suffer” (1971), “Roforofo fight” (1972), “Afrodisiac” (1973), “Expensive shit” (1975) ou “No bread” (1976) são alguns bons exemplos.
Na sombra de Fela, porém, existia outra Nigéria não alcançada pela língua yoruba onde os dialectos igbo e edo facilitavam uma alternativa de comunicação mais livre da pesada influência dos desenvolvimentos afrobeat testados no laboratório Shrine. Assim, o highlife importado do vizinho Ghana juntamente com influências de soul e rock (muitos destes músicos ganhavam a vida em hotéis a tocar para ocidentais…) ofereciam um template alternativo a que muitos músicos aderiram. Tal como a arqueologia deep funk permitiu compreender em relação à produção norte-americana que o impulso criativo se traduzia frequentemente numa única edição, também na Nigéria muitas destas gloriosas bandas não passavam do lançamento de um solitário single, estando por isso esquecidas há décadas. “Nigeria special” oferece-lhes uma renovada possibilidade de eternidade.
Ao número inaugural da revista “Shook”, Miles explicou que nesta compilação “não há ju ju nem afrobeat” e que a opção foi por olhar antes para “raridades que poderiam existir apenas em obscuras colecções ou na memória das pessoas.” Na verdade, compilações como “Nigeria Special” facilitam a construção de uma memória que em caso contrário não teria tradução concreta.
Os Funkees entregam em “Akula owu onyera” uma visão muito própria do R&B americano guiada pelo que soa a um órgão Farfisa e com a voz encharcada em reverb, o som da modernidade na África Ocidental dos anos 70. Os metais e a guitarra cristalina da Harbours Band em “Kama mosi” já são mais devedores da tradição highlife, enquanto Mono Mono aproveita o break em “Eme kowa iasa ile wa” para divergir para território hendrixiano antes de voltar a colocar os pés na sua África. A diversidade de propostas é estonteante, o que também reafirma a imagem contrária de uma Nigéria a marchar sob um mesmo ritmo na primeira metade dos anos 70.
Na arqueologia, a capacidade de perspectivar civilizações inteiras a partir de fragmentos dispersos tem permitido construir vívidas imagens do passado. O que coleccionadores como Miles Cleret fazem não é muito diferente: por cada tema de músicos e bandas como os Anambra Beats, Celestine Ukwu, Sahara All Stars ou a Nigerian Police Force Band existirão dezenas que nunca conheceremos. “Nigeria Special” permite-nos imaginar ao que soariam.

(texto publicado originalmente no número 26 da revista Op.)

domingo, 8 de março de 2009

Jazz Bridges # 13: A bossa do jazz

Aos 50 anos, a Bossa Nova continua a ter uma memória fresca. A Blue Note volta a dar-lhe atenção…

Mais do que uma ponte, existe entre a bossa nova e o jazz um dedicado e já longo diálogo que neste ano das comemorações do meio século da nobre invenção de Jobim e Gilberto é naturalmente reavivado. Há agora no mercado duas interessantes compilações com carimbo Blue Note que ilustram bem o perfil dos dois interlocutores deste diálogo: “Blue Note Plays Bossa Nova” é um triplo cd com Lou Rawls, Hank Mobley, Lee Morgan, Nancy Wilson, Grant Green, Ron Carter, Chick Corea, Donald Byrd, Charlie Rouse, Stanley Turrentine, Cannonball Adderley ou Blossom Dearie; e “Platinum Collection Bossa Nova” é igualmente uma colecção que se estende por três cds e que reúne interpretações de Pery Ribeiro, António Carlos Jobim com Roberto Paiva, Dick Farney & Claudette Soares, Eumir Deodato, Marcos Valle, Elizeth Cardoso, João Donato, Milton Banana, Roberto Menescal e, entre outros, Wilson Simonal. Pode argumentar-se que ambos os lançamentos falham momentos importantes e históricos desse diálogo – por limitações de catálogo, num dos casos: Stan Getz gravou com João Gilberto para a Verve e Sinatra com Jobim para a Reprise. Do lado brasileiro destes lançamentos, a ausência directa de João Gilberto é mais difícil de compreender dada a sua ligação à Odeon, catálogo nas mãos da mesma EMI que controla a Blue Note… Ainda assim, pelo fôlego e qualidade do material reunidos, tanto “Blue Note Plays Bossa Nova” como “Platinum Collection Bossa Nova” são duas valorosas adições a qualquer discoteca pessoal que podem funcionar como resumo de universos específicos ou portas de entrada para não iniciados. Em ambos os casos, garante-se o mergulho num oceano de primorosas melodias tocadas por um ritmo que ajudou a definir uma época.
Em texto recente para o Expresso, o jornalista e escritor brasileiro Nelson Motta identifica o período de imposição da bossa nova no Brasil com a gestão do governo liberal de Juscelino Kubitschek quando o Brasil, “depois de ganhar pela primeira vez a Copa do Mundo de futebol, na Suécia, viveu um ciclo de progresso e desenvolvimento nunca visto, com a construção de Brasília em apenas quatro anos, a industrialização, a televisão, as novas estradas e fábricas: os brasileiros apaixonaram-se pelo futuro.” E para tal decidiram, nalguns casos, reinventar o passado à luz dos mais modernos desenvolvimentos. Foi certamente esse o caso da bossa nova: como indicava recentemente Gary Giddins no New Yorker, Jobim e Gilberto pertenciam a uma juventude moderna e sofisticada, educada nas subtilezas do bebop que se soltava das modernas estereofonias que equipavam os mais elegantes apartamentos de Copacabana. «Jobim,» garante Giddins, «encontrou uma forma de usar as harmonias do bebop como a base para as suas irresistivelmente líricas melodias.» E João Gilberto, que Caetano Veloso identifica como “o horizonte da criação musical popular brasileira”, despiu o samba de morro e Carnaval aproveitando apenas o seu lado mais intuitivamente rítmico e criou um “Chega de Saudade” eterno que em 58 se estreou em single com “Bim Bom” no lado B.
A bossa nova chegou agora aos 50 anos, mas no Brasil não resistiu tanto tempo: depois dos anos “dourados” de Kubitschek, a ditadura militar imposta em 1964 impeliu a música noutras direcções: o tropicalismo definiu-se como fonte de liberdade que levou inclusivamente ao exílio de alguns dos seus principais estetas, como Caetano, e a MPB reforçou o laço às origens. Aliás, a dada altura, até mesmo alguns dos artistas mais directamente ligados à bossa, como Marcos Valle ou Dori Caymmi e Carlos Lyra, procuraram libertar-se da “influência do jazz”, como dizia a canção, e ecoar escritos de teóricos como José Ramos Tinhorão que apelavam a um sentir mais declaradamente nacionalista.
Ao mesmo tempo que o samba procurava reconquistar espaço dentro da bossa, João Gilberto aprofundava as suas ligações ao jazz com o álbum de 1964 gravado em conjunto com Stan Getz, nos Estados Unidos. “Getz/Gilberto” bateu recordes de vendas, conquistou Grammys e impôs uma loucura generalizada pela bossa nos Estados Unidos, facto que talvez justifique que Ben Ratliff, do New York Times, se refira a Gilberto como um “estratega”. Jobim, claro, acompanhou Gilberto nesta imposição exterior da bossa nova, que de facto a tornou num som universal, e em breve estava a gravar ao lado de Sinatra, expoente máximo da sofisticação cool que a bossa também ecoava. As “obras primas de 3 minutos” (como lhes chamou Ratliff) de Jobim impuseram-se como telas em branco em cima das quais se podiam pintar diferentes quadros. O jazz americano, na sua contínua busca da expansão de idiomas, percebeu na bossa não só uma injecção desejável de exotismo tropical, mas também uma matéria prima moldável capaz de sublimar novas formas de pensar musicalmente. O jazz teve sempre uma paixão pela modernidade e em meados dos anos 60 poucas coisas eram mais modernas do que as balançadas melodias que chegavam do Brasil em catadupa, como se alguém tivesse, de repente, aberto as comportas de uma nova barragem musical.

sexta-feira, 6 de março de 2009

África Eléctrica # 21

The Underground Spiritual Game
é uma compilação de 2004 que celebra a obra de Fela Kuti e que mereceu total destaque na emissão # 21 do África Eléctrica. Frank "Voodoo Funk" Gossner assina o set que preenche a segunda hora. Boa audição:

África Eléctrica # 21 - 1ª hora

África Eléctrica # 21 - 2ª hora

quinta-feira, 5 de março de 2009

Chart 1: Lab Funk 9 + 1

Ok, primeira edição de posts com charts temáticas que conto ir elaborando a partir das novidades que vou adquirindo. Esta já tem um par de meses, foi criada a convite da Flur e procurava ilustrar a minha paixão por um determinado tipo de funk mais progressivo que nos últimos anos tem vindo a despontar lentamente. A propósito deixo por aqui também texto sobre o assunto escrito para a Op. (novo número em breve por aí...). Mas para já, então, Lab Funk 9 + 1.

LAB FUNK 9 + 1

mrr-adm – 012 (no label)
karl hector & the malcouns – transition >j< (now again)
dam funk – burgundy city (stones throw)
poets of rhythm – discern/define (quannum)
the natural yughurt band – voodoo (jazzman)
the budos band – up from the south (daptone)
whitefield brothers
– yakuba (field)
the heliocentrics – distant star (now again)
polyversal souls – sad nile (fryers)
+
mhe – 007 (sound in color)




Free funk

Quando Ornette Coleman se apresentou em quarteto no Five Spot Café de Nova Iorque no Outono de 1959 o público não podia imaginar o que o esperava. A aparente loucura expressa no mar de ruído produzido por quatro solos em simultâneo, sem estrutura ou ordem convencional que pudesse ser reconhecida, tinha também uma espessura política – o desejo de liberdade não existia apenas em relação às progressões harmónicas ou às bases rítmicas comuns no hard bop, mas em relação à própria vida – Fred Gioia, a propósito de 50 anos de free jazz, escreveu que “parte do fascínio exercido por esta música passava pelo seu estatuto marginal, pela sua exclusão das estruturas de poder da sociedade a que era suposto opor-se.” Ora, tendo em conta o “peso” histórico da palavra “free” fará então sentido usá-la em relação a outros géneros musicais? Free folk ou free rock são duas hipóteses avançadas em tempos recentes. Em ambos os casos, a palavra “free” parece traduzir uma vontade de ruptura, embora nem sempre estritamente musical: a “bagagem” (ética, política, filosófica ou até emocional...) que os géneros vão coleccionando torna-se por vezes incómoda para quem apenas pretende exprimir-se sem ter que estar permanentemente a consultar um “livro de estilo”.
O funk é um género onde a bagagem referida no parágrafo anterior é absolutamente crucial, sobretudo a emocional. A grande invenção de James Brown capitalizou desde o início na carga sexual manifestada na repetição, na força e no suor debitado pelos seus protagonistas – se a soul era espírito, o funk era corpo. Esta música possuiu sempre esse lado mais ritualístico e encenado, como uma manifestação pura de identidade – negra e bastante física, pois claro: “say it loud, i’m black and i’m proud”, “like a sex machine”... É por aí que (também) se deve entender o recurso à palavra funk por estetas como Juan Atkins ou Derrick May: mesmo na música que não vivia de um pulsar colectivo e que deslocava a disciplina da repetição para os circuitos integrados de máquinas com nomes de ficção científica (Drumulator, TR 808?...) era possível detectar sem grandes problemas o volume da tal bagagem. A manifestação de identidade e a encenação de novos rituais colectivos perante uma ideia particular de comunidade continuavam a ser coordenadas importantes. O funk mantinha a sua importância, como som, mas também como ideia.
A pergunta impõe-se, então: o que acontece quando se ignora a tal bagagem e se toma o funk como matéria de laboratório, rompendo com o “livro de estilo” seguido por todas as bandas – dos Dap Kings de Sharon Jones e Amy Winehouse aos Soul Investigators de Nicole Willis – que ajudaram a recolocar o funk na ordem do dia? “Untitled”, de MRR-ADM, um dez polegadas que conta com a colaboração de Malcolm Catto e onde todas as regras são quebradas pode muito bem ser a resposta para essa questão. Free funk (e psychedelic...) é o classificativo avançado no site discogs.com.
Pode parecer muito esotérico, mas MRR-ADM (o nome é a primeira regra quebrada – comparem-no a “Dap Kings” ou “Soul Investigators”...) é, na verdade, o conjunto de iniciais de Mike Raymond Russell e Adam Douglas Manella, até muito recentemente conhecidos como MHE. Esta dupla possui uma curiosíssima discografia espalhada essencialmente por compilações e alguns sete polegadas da Sound In Color, editora responsável por “Space shift”, a estreia a solo de Steve Spacek. Os títulos das suas produções são uma simples sequência numérica (segunda regra quebrada: onde estão palavras como “groove”, “grease”, “shuffle”, “skank” ou outros pedaços de calão que funcionam como sinónimos de ritmo?) e “Untitled” inclui novas peças entre “009” e “012” além de uma faixa bónus de Catto, só de bateria, a célula primal do funk. Elvin Jones, um dos arquitectos da bateria no free jazz, explicou a Valerie Wilmer que o papel do baterista é manter o tempo: “quer aches que o estás a fazer ou não, de uma forma ou de outra o baterista mantém sempre o tempo, quer consciente ou subconscientemente – ou inconscientemente – o baterista está a manter o tempo ou um tempo implícito. E isto independentemente do quão abstracto que possa parecer.” Até a revolução tem um ritmo.
Malcolm Catto há muito que mostra esta tendência para a abstracção: basta ouvir “Popcorn bubble fish” (2001) ou o posterior “Bubblefish breaks” (2002) editados na Mo’Wax para entender que a bateria sempre foi o interface de Catto com o espaço sideral. Antes dessas edições no selo de James Lavelle, Catto já havia marcado presença na cena nu-funk com os Soul Destroyers, gente do clássico e poderoso “Blow your top” (2000). Mais recentemente, Malcolm participou no colectivo de Connie Price, os Keystones (que editaram na Stones Throw), surgiu em palco com DJ Shadow (“Live! In tune and on time”) e posteriormente integrou os Heliocentrics que antes de editarem o seu incrível álbum de estreia (“Out there”, na Stones Throw, foi um dos melhores discos de 2007) serviram de mão de obra para “This time”, tema mais luminoso de “The outsider”.
Juntos, MRR-ADM e Catto protagonizam um dos mais sérios passos da nova geração funk em direcção ao futuro. Depois de retirada ao funk toda a carga cultural e histórica, resta a fundação: o tempo, no sentido musical do termo, a tal ideia de ritmo de que Elvin Jones falava. Nada mais parece importar e daí a completa ausência de informação na capa (a remeter para o anónimo território dos Library records e a quebrar com mais uma regra de ouro no mundo do funk onde uma forte identidade gráfica sempre foi requisito obrigatório) e o total despojamento do interior – não há títulos de temas (a numeração referida circula na net), informação de editora, logos, nada. Só três palavras surgem sobre o plástico que protege a capa: “Featuring”, “Malcolm” e “Catto”. Só a bateria importa. A bateria e farrapos de electrónica primitiva, o fuzz de guitarras em gestão mínima de recursos, o “reverb” limpo e clínico, como se tudo isto tivesse sido gravado num laboratório e não num daqueles estúdios onde as paredes já chegam para contar uma história.
“Untitled” é funk livre porque não exibe nenhuma intenção, não tem um programa, uma mensagem ou outro propósito aparente que não seja o descarnar da sua própria essência. E nesse sentido é uma pequena obra-prima, um gesto de corte radical e um rasgo de futuro. Tudo isto, em edição limitada de mil exemplares. Aqui: www.dirtydrums.com.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Moodymann: freaky motherfunker

Freaky! Palavra certa para quem nunca se deu bem com convenções de espécie alguma. Kenny Dixon Jr, aka Moodymann, lançou em Dezembro último mais uma amostra do seu génio: Det.riot 67 é um LP que explora o universo singular de Moodymann, cruzando uma visão pessoalíssima do house com uma gestão rítmica que é só sua, quase sempre do lado errado do contador de bpms, adoptando um passo que neste momento não é igualado por nenhum outro produtor. Det.riot 67 é também um objecto político, com a cadência marcial do tema título a suportar uma narrativa de época (a voz é, claramente, de um homem branco) que oferece uma perspectiva dos riots de Detroit de 1967 que obviamente não é a de Moodymann. Todo o pulsar do álbum é político: mesmo o carácter sexual de «Freeki Mutha Fucker» é político (a erupção de 67 coincide com o auge do orgulho negro, ameaça para a moral branca dominante). E é com classe que KDJ enquadra todas essas ideias: space disco, house mutante, guitarras incendiadas pelo espírito de Prince, funk suado e, uma vez mais, profundamente sexual.
Entretanto, já há novidade no hiper-activo campo de Moodymann: Another Black Sunday. A saga prossegue e aterra na Flur dentro de pouco tempo.

terça-feira, 3 de março de 2009

A nova velha África musical

Da África antropológica para a África arqueológica, da “world music” para o afrobeat e afro rock, da Real World para a Soundway: há uma nova velha África para descobrir, feita de vinil desenterrado por editores que são o resultado do improvável cruzamento entre o espírito aventureiro de Indiana Jones e o carácter obsessivo dos coleccionadores. Rui Miguel Abreu*


“Estou a ficar sem páginas em branco no meu passaporte,” escrevia, em Abril passado, Frank Gossner. “Nos últimos três anos atravessei fronteiras inter-africanas em mais de 50 ocasiões.” Estas poderiam ser as palavras de um atarefado funcionário das Nações Unidas, mas na verdade foram registadas num blog por um DJ alemão que esgotou o espaço para carimbos de visa no passaporte graças a uma inexplicável sede de música que o levou a viver incríveis aventuras durante a época em que habitou na Guiné. Gossner faz parte de uma nova classe de editores que está a alterar o tradicional olhar sobre África que se impôs desde que a expressão “World Music” foi criada para identificar um segmento do mercado discográfico mundial. Juntamente com Miles Cleret ou Samy Ben Redjeb, donos das editoras Soundway e Analog Africa, Frank é um dos responsáveis por se voltar a descobrir a África musical e urbana que existia antes dos melhores músicos do continente terem começado a apanhar aviões para Paris e Londres. A música africana disponível na série “Nigeria Special” da Soundway ou na compilação “Vampi Soul Goes To Africa” foi produzida quase sempre sem interferência exterior, segundo parâmetros técnicos e artísticos autenticamente africanos e sem pensar em circuitos internacionais de distribuição. Com poucas excepções – como Fela Kuti ou Tony Allen – a maior parte desta produção manteve-se secreta durante décadas. Até que estes autênticos exploradores a começaram a desenterrar das areias do tempo.
Até agora, imperava uma outra ideia de África, menos urbana e mais tradicional, menos eléctrica e mais acústica. Uma ideia que tem raízes na década de 60. Durante o Verão que agora terminou, completaram-se quatro décadas sobre a “expedição” de Brian Jones a Marrocos para gravar os Master Musicians of Jajouka. Joe Boyd, o histórico produtor americano que na década de 60 ajudou a cimentar a cena psicadélica em Londres envolvendo-se nas carreiras de gente como Nick Drake e na fundação do mítico clube UFO, expandiu as suas actividades para os terrenos da world music na década de 80. Recentemente, nas páginas do britânico The Guardian, Boyd apontava a terapêutica viagem do músico dos Rolling Stones às montanhas de Ahl-Srif como um importante momento fundador do conceito de “música do mundo”. Escreve o autor de “White Bicycles – Making Music in The 60s” (Serpent’s Tail, 2006) que, no que lhe diz respeito, o álbum registado por Jones na vila de Jajouka, editado pelos Rolling Stones em 1971, foi “a primeira gravação de world music”, acrescentando: “Jones foi o primeiro a pegar numa música exótica nos seus próprios e autênticos termos por nenhuma outra razão que não fosse o estar convencido que isso seria bom entretenimento para o exterior.”
Houve outras expedições famosas a África durante a década de 70: James Brown, Ginger Baker (baterista dos Cream), Roy Ayers e até Paul McCartney foram alguns dos que não resistiram ao apelo político-musical de Lagos durante o exercício do “presidente negro”, Fela Kuti. Todas estas viagens tiveram em comum um certo pendor antropológico – músicos do Ocidente que buscavam uma experiência de imersão numa realidade radicalmente diferente da que conheciam, visitando o Shrine de Fela com uma atitude provavelmente não muito distante daquela que equipa um cientista em visita a uma remota tribo amazónica. Dessa abordagem nasceram os códigos com que se regeu a imposição do mercado de world music, na década de 80: o encaixe de exemplos de pureza nos conceitos desenvolvidos pela indústria discográfica moderna animou boa parte de catálogos importantíssimos como os da Real World, Earthworks ou World Music Network. No entanto, como qualquer antropólogo concederá, basta apontar uma câmara para se alterar o objecto observado. Muita da música lançada nos catálogos acima enumerados foi captada em estúdios que obedeciam aos parâmetros modernos de qualidade sonora, sobretudo em França e Inglaterra. Tal como aconteceu com a construção da “primeira estrela do terceiro mundo”, Bob Marley, cujos álbuns tinham uma versão jamaicana e outra “ocidental” sendo para isso remisturados em estúdios ingleses, também esta “primeira” descoberta de África foi alvo de um “upgrade” tecnológico para se compatibilizar com os ouvidos educados na alta-fidelidade dos mercados europeu e norte-americano. O que era suficiente para uma edição em cassete vendida nas ruas de Dakar ou Lagos não servia, certamente, para um lançamento em CD disponível nas cadeias das “high streets” de Londres e Nova Iorque.
Frank Gossner (ver entrevista aqui ao lado), refere-se a este novo olhar editorial sobre África quando nos explica que “há um inimaginavelmente grande e excitante acervo de música em África que foi ignorado pelo mundo Ocidental durante décadas.” Parte da razão para esse desconhecimento talvez se possa adivinhar nas palavras de Orlando Julius, veterano da cena musical nigeriana que em 1966 lançou o explosivo “Super Afro Soul”, álbum que a editora espanhola Vampi Soul reeditou num luxuoso duplo CD muito recentemente: “Éramos uma banda de dez elementos e utilizávamos 8 microfones para gravar directamente para uma máquina de duas pistas stereo. Todas as canções eram gravadas ao vivo, sem ‘overdubs’, sem espaço para erros… quer dizer, havia alguns, mas nós transformávamos os erros numa marca de estilo!” Enquanto Orlando Julius convertia as imperfeições técnicas dos seus Modern Aces num traço único da sua identidade sonora, Brian Wilson criava em intermináveis sessões o clássico “Pet Sounds” utilizando quantos microfones queria num estúdio high-tech de Los Angeles equipado com gravadores de quatro e oito pistas. O contraste tecnológico extremo ajuda a explicar porque é que a música criada em África nesta época só muito esporadicamente conseguiu ultrapassar as fronteiras locais. Nicholas Addo Nettey, que tocou com Fela Kuti no ensemble Africa 70, confirma que “alguma da música produzida na Nigéria nos anos 60 e 70 era editada em França e Inglaterra, mas a maior parte era lançada apenas localmente.”
Além de gravar com os Africa 70 de Fela Kuti, Nettey também editou em nome próprio um daqueles discos que nunca ultrapassou as fronteiras da Nigéria e cuja limitadíssima edição original o transformou num tesouro literalmente impossível de descobrir. Frank Gossner, nas atribuladas viagens relatadas no blog voodoofunk.blogspot.com, conseguiu localizar o álbum e encontra-se presentemente a dar os retoques finais para uma reedição do LP perdido de Pax Nicholas & The Nettey Family na conceituada editora americana Daptone, a mesma de Sharon Jones e dos Dap Kings que tocam em boa parte das músicas do álbum “Back in Black” de Amy Winehouse. “Este é um dos meus discos favoritos de afrobeat,” explica Gossner. “Nicholas, que escreveu, compôs e produziu este disco, costumava tocar percussão nos Africa 70 e este LP certamente mostra alguma influência de Fela, mas na minha opinião vai ainda mais fundo do que o trabalho dele. As quatro faixas deste disco têm um toque de psicadelismo, são fortíssimas na pista de dança, mas também são excelentes para ouvir em casa, enquanto se fuma um bom cigarro. É uma gravação espantosa e única. O Nicholas é originário do Gana e agora vive em Berlim e está muito contente por ir ver este disco reeditado.” Nicholas Nettey confirma esse estado de alma e explica-nos que tem uma nova banda, Ridimtaksi, que tocará em Berlim no próximo dia 24 de Outubro: “tocamos apenas composições da minha autoria e estamos à procura de management.” Orlando Julius partilha o entusiasmo e também se mostra pronto para reentrar em cena: “A minha música está de novo aí, pela graça de Deus, e eu adorava voltar a fazer digressões. Tenho ainda muito para oferecer, os meus temas clássicos, mas também novas composições. E tenho uma banda super coesa e belíssimos dançarinos.”
Tal como Frank Gossner, o inglês Miles Cleret é igualmente um arquivista compulsivo que adoptou a abordagem arqueológica para erguer a Soundway, uma pequena editora que nos últimos meses registou uma actividade muito intensa com a edição das compilações “Nigeria Special – Modern High Life, Afro-sounds & Nigerian Blues 1970-76”, “Nigeria Disco Funk Special”, “Nigeria Rock Special” e ainda “Guitar Boy Superstar” de Sir Victor Uwaifo que se juntam no seu catálogo a títulos já editados há mais tempo de Mulatu Astatke (Etiópia), Geraldo Pino & The Heartbeats (Serra Leoa), T.P. Orchestre Poly-Rythmo (Benin) e ainda às compilações “Ghana Soundz” (dois volumes) e “Afro Baby”.
A série que lança luz sobre a década de 70 nigeriana tem a espessura de um tratado de antropologia, com os artefactos usados na elaboração dos alinhamentos cuidadosamente reproduzidos, sem descurar as marcas do tempo que os danificaram, tal como acontece com um vaso etrusco rachado que ainda assim tem lugar na vitrina de um museu. Cuidadosas anotações enquadram depois cada uma das entradas nestas compilações que permitem entender um pouco melhor o que o próprio Miles Cleret descreve como “a mais importante fase na história da música gravada na Nigéria.” “Há milhares de faixas de artistas populares e outros não tão populares que nunca foram editadas fora da África Ocidental. E é surpreendente,” escreve o editor nas notas de capa de “Nigeria Special”, “que um legado musical tão rico e variado como o da Nigéria, um país tão vasto, se tenha tornado tão esquecido e indocumentado em tão pouco tempo.” Frank Gossner adianta uma explicação para tal facto ao mesmo tempo que indica a Internet como fonte de mudança: “Em muitos países africanos existem apenas um par de jornais e normalmente são controlados pelo estado e em sítios como a Guiné, Serra Leoa ou Libéria não há sequer infra estruturas que permitam a impressão de livros. A disseminação de informação através da Internet vai mudar tudo nas próximas décadas.”
Enquanto na Nigéria ou no Gana o hip hop e derivações locais se impõem como um monopólio estético, o afrobeat vai encontrando quem lhe perpetue a chama na Europa e nos Estados Unidos. De certa forma, a mesma dinâmica que permitiu ao funk assistir a um renascimento está agora em marcha com o afrobeat. A mesma perspectiva arqueológica foi aplicada às incontáveis produções que nunca se fizeram notar para lá da longa sombra lançada por James Brown na América: editaram-se compilações de pérolas obscuras e não tardou muito para que selos como a Daptone ou a Soul Fire começassem a produzir versões contemporâneas do mesmo groove que no arranque dos anos 70 se ouvia em tudo o que era pequeno clube do interior do Texas ou da Flórida. Os Antibalas lideram, claro, este “regresso” a África, tal como tinha acontecido com os Poets of Rhythm no caso do funk.
Martin Perna, dos Antibalas (que já se chamaram Antibalas Afrobeat Orchestra), não tem dúvidas e afirma, peremptório, que existe, “definitivamente, um ressurgimento no interesse pelos grooves afro dos anos 70.” Quando questionado sobre quais os nomes fundamentais para se planear uma entrada no universo do afrobeat, Perna nomeia Orlando Julius, além dos inevitáveis Fela Kuti e do seu histórico e ainda plenamente activo baterista Tony Allen (que tocou este Verão no CCB). “A contribuição de Orlando Julius para a integração do jazz e do funk na música nigeriana foi enorme, embora bastas vezes ofuscada pela obra de Fela. Felizmente, muito do seu trabalho tem vindo a ser reeditado e isso permite-nos reavaliá-lo,” explica o líder dos Antibalas que também edita como Ocote Soul Sounds. E essa é uma ideia chave para este crescendo de actividade no plano das reedições de música urbana africana das décadas de 60 e 70: a reavaliação.
Fela foi durante muito tempo, no que à imprensa internacional dizia respeito, sinónimo de Nigéria. Na revista Wire, escrevia-se em 98, um ano após a sua morte, que a cena musical nigeriana dos anos 70 era comandada por companhias como “a EMI, Decca e Philips que dominavam o negócio da música na África ocidental editando sucedâneos de soul americano e o afrobeat patenteado por Fela.” Quase que se dá a entender que não havia nada no meio. Mas o trabalho de editoras como a britânica Soundway, a francesa Oriki Music ou a alemã Analog Africa tem permitido alterar a percepção do passado: por debaixo das poeiras do tempo e após cuidadosas escavações começa a surgir um mosaico de edições que revela a existência de uma vibrante cena musical que em condições adversas teve a capacidade de produzir um som perfeitamente único a que o presente parece finalmente fazer justiça. “À medida que o tempo vai passando,” escreve Miles Cleret nas notas que acompanham a edição de “Nigeria Rock Special”, ”as muitas camadas de produção musical registada por todo o mundo nas décadas de 60 e 70 continuam a ser exploradas e a revelar muitas e bem-vindas surpresas.”
Esse trabalho, como aconteceu com o funk, deve-se menos ao esforço de executivos bem informados que se limitam a licenciar músicas de catálogos convenientemente organizados do que à sede de aventura de uma nova classe de editores que não hesitam em meter uma mochila às costas para se lançarem à aventura nas ainda muito inexploradas avenidas musicais de países como o Gana, Nigéria, Togo, Serra Leoa, Benin ou Guiné. Samy Ben Redjeb, responsável pela etiqueta Analog Africa, descreve nas notas de capa da espantosa compilação “African Scream Contest” o que poderia ser o início de uma cena de um filme de Indiana Jones caso o respeitável arqueólogo usasse uma mala de DJ e um gira-discos portátil em vez de um chicote: “Estou no banco de trás de uma moto mesmo no centro de Cotonou, a maior cidade do Benin, a ziguezaguear por entre Zemidjans, táxis do mato, e muitas outras “ferramentas” de transporte. O condutor é nada mais, nada menos do que Melome Clement, fundador da lendária Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou. De vez em quando ele grita a plenos pulmões que gostaria de ter um carro de forma a eu estar mais confortável. Mal imagina ele que eu me estou a divertir como nunca na vida. E não consigo parar de me perguntar a mim mesmo como raio vim eu aqui parar.”




INDIANA GOSSNER


Frank Gossner é um DJ alemão que a partir do blog Voodoo Funk foi relatando incríveis aventuras que viveu enquanto se dedicava à procura de discos na Serra Leoa, Togo e Benim a partir de uma base de operações na Guiné, onde viveu durante três anos com a sua mulher, funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão. Recentemente, Frank mudou-se – juntamente com uma impressionante colecção de discos – para Nova Iorque onde deu agora início a um programa de rádio na WFMU (http://www.wfmu.org/) e a uma noite Voodoo Funk no clube Santas (todas as quintas feiras) onde irá tocar, exclusivamente, peças encontradas durante a sua estadia em África. Paralelamente, Frank tem vindo a trabalhar com a cineasta Leigh Iacobucci na montagem do documentário “Take Me Away Fast” (trailer aqui) que ilustra as suas aventureiras expedições discográficas.
Acabou de chegar a Nova Iorque com uma tonelada de discos africanos. Já os mostrou a alguém?
Nova Iorque é a minha segunda casa. Mesmo quando vivia em África vinha sempre aqui passar uma semana e sempre que cá vinha tocava na principal noite de funk, a Bumshop. E de cada vez que o fiz foi um sucesso.
Porque é que acha que música criada há 3 décadas num continente distante continua a ser capaz de fazer as pessoas mexerem-se numa pista de dança?
Penso que vivemos numa era em que temos que ser capazes de admitir que a invenção não é tudo: temos que perceber que algumas das maiores realizações musicais já se encontram atrás de nós. Não quero com isso dizer que o que se faz agora não seja bom, mas o carácter destas velhas gravações africanas é tão único que é difícil imaginar algo de tamanha relevância cultural se volte a repetir. Muitas pessoas pensam que só havia Fela Kuti e que foi ele que inventou o afrobeat que há quem pense que se trata de uma mistura de funk de James Brown, jazz e música yoruba local. Bem, mas a verdade é que o James Brown era um africano na América e o que ele fazia era música africana. Fela só fechou o círculo. E havia centenas de bandas a gravar misturas muito particulares de funk africano e afrobeat. No Mali, Senegal, Gana, Togo, Benin e, claro, na Nigéria.
Qual a razão então para tamanha e tão convergente actividade no domínio das compilações com material africano da década de 70?
Há cada vez mais pessoas expostas a esta música e cada vez mais pessoas interessadas em ouvir mais música desta e isso leva-as a procurar este tipo de compilações. Editoras como a Analog Africa, Daptone, Soundway, Vampi Soul estão a fazer um trabalho meritório até porque pagam royalties aos músicos originais.
Em que ponto está o seu documentário?
Encontra-se ainda na fase de pós-produção. A realizadora Leigh Iaccobucci seguiu-me durante um mês inteiro no Togo e no Benin. Estivemos em alguns locais incríveis e encontrámos alguns dos velhos músicos que fizeram discos fantásticos e que nos ajudaram a contar a história por trás desta música.
Se alguém quiser dar atenção séria a esta música, que compilações e reedições sugere?
Bem, recomendaria que comprassem tudo o que saiu na Soundway: as compilações “Ghana Soundz” e a série “Nigeria Special” são essenciais. "African Scream Contest" é outra compilação muito boa e as antologias de Orlando Julius e de Fela Kuti na Vampi Soul também são essenciais. Coleccionar discos africanos originais é muito difícil e caro, mas até mesmo para um não DJ ter alguns originais poderia ser fantástico uma vez que têm designs incríveis tornando o próprio disco uma obra de arte e um artefacto. Já existe uma pequena mas significativa rede de coleccionadores internacionais que eu acho que vai crescer muito nos próximos anos.
O material mais importante já se encontra reeditado ou ainda há muito para descobrir?
A Soundway está a fazer um extremamente importante trabalho histórico e cultural. E eles têm feito bem mais do que apenas raspar a superfície e sei de fonte segura que eles têm ainda muito material incrível para futuras edições. Mas sim, continua a existir muita música para descobrir e eu penso que cada disco vendido por editoras como a Soundway é uma ajuda para que essas preciosidades venham a ser lançadas.
CINCO TESOUROS


Vários
Nigeria Rock Special
Soundway, distri. Sabotage


De tempos a tempos, a descoberta de certos artefactos faz os arqueólogos alterar suposições sobre antigas civilizações. O mesmo acontece no mundo da música: graças ao esforço de editores como Miles Cleret tornou-se recentemente evidente que nem só Fela ou afrobeat existiam na Nigéria dos anos 70. Com a visita de Ginger Baker, o baterista dos Cream de Eric Clapton que estabeleceu um estúdio em Lagos, a influência do rock e de figuras como Hendrix tornou-se mais clara, injectando fuzz e ácido nas guitarras normalmente cristalinas do highlife.

Vários
African Scream Contest
Analog Africa


Livro de 44 páginas profusamente ilustrado e carregado de anotações precisas que nos revelam imenso sobre El Rego et Ses Commandos, a Discafric Band, Les Volcans de la Capital ou a Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, nomes que sempre que possível Samy Redjeb fez um esforço para encontrar, nem que para isso fosse necessário pagar anúncios em rádios locais do Benin. Há por aqui muitos ritmos hipnóticos, vocais expressivos e complexos arranjos de metais para nos prenderem a atenção por dias.

Vários
Nigeria 70 – Lagos Jump
Strut


A recentemente reactivada editora britânica Strut foi pioneira na atenção a África e editou belíssimos álbuns de Blo, Segun Bucknor, Tony Allen e Peter King antes de sair de cena em 2003. Uma dessas edições, datada de 2001, foi o massivo triplo CD “Nigeria 70 – The Definitive Story of 1970s Funky Lagos”. No regresso à actividade em 2008, a “marca” Nigeria 70 é recuperada com este “Lagos Jump” compilado por Duncan Brooker e anotado por John Collins.

Vários
Vampi Soul Goes to Africa
Vampi Soul


A Vampi Soul é uma editora espanhola com um impressionante trabalho ao nível da recuperação de fundos de catálogo na área da soul, funk e música latina (de Joe Bataan a Queenie Lyons e Ruth Brown). Recentemente, a Vampi Soul começou também a dar atenção ao continente negro e já leva excelentes edições de Tony Allen (“Afro Disco Beat”) e Fela Kuti (“Lagos Baby”) além de uma compilação de título “Highlife Time” (todos estes títulos ocupam duplos cds). Este “Vampisoul Goes To Africa” é uma espécie de sampler que resume material já editado e antecipa futuros lançamentos.

Kon & Amir
Off Track Vol. 2: Queens
BBE


Kon & Amir são uma dupla de diggers ligada ao universo do hip hop. Durante anos editaram compilações caseiras com o resultado das suas expedições de busca de discos e tornaram-se uma lenda entre os círculos de coleccionadores de funk. Recentemente, assinaram com a britânica BBE e começaram a série Off Track que agora chega ao segundo volume. Sempre atentos às tendências do “diggin’”, dão nesta compilação atenção ao modern soul e boogie dos anos 80 (Kon) e à música africana (Amir), explorando, em ambos os casos, a funcionalidade da música do ponto de vista do DJ.

(Artigo publicado no suplemento Ipsilon do Público em Outubro último.)