domingo, 29 de março de 2009

Terry Callier: Occasional Rain & What Color is Love


Terry Callier é o segredo que já todos ouviram, aquele tesouro que se gostaria de guardar, mas cuja partilha é irresistível. Os seus álbuns são banda sonora de mil e uma paixões e de outros tantos corações quebrados, talvez porque nele luz e sombra partilhem idêntico espaço.
Os dois álbuns agora incluídos na série de reedições da Verve Originals (ambos editados originalmente na fabulosa Cadet, a etiqueta que a Chess criou para lançar jazz) são provavelmente as peças centrais na discografia de Callier. Amigo de infância do grande Curtis Mayfield, Terry Callier começou por se natabilizar no circuito folk de Chicago, tendo editado em 64 o clássico «The New Folk Sound of Terry Callier», despojado exercício de canções onde a sua voz ocupava todo o espaço aural e emocional. O verdadeiro arranque da sua carreira viria uns anos mais tarde, precisamente com «Occasional Rain», álbum produzido pelo génio Charles Stepney, o homem por trás dos Rotary Connection de Minnie Ripperton. Stepney era um arranjador brilhante, capaz de combinar jazz, soul e psicadelismo como provavelmente só David Axelrod terá conseguido. Os seus arranjos são complexas peças de enorme espessura emocional, sempre em busca de soluções incomuns que não temem olhar para lá do contexto em que se inserem – mesmo a trabalhar com um cantor negro num cenário soul-jazz, Stepney não teme olhar para o country ou para a tradição operática europeia para inundar as suas canções de inesperadas texturas, facto que grita “liberdade” e ancora esta música numa época especial sem por isso a datar.
A escrita de canções nestes dois álbuns é absolutamente impressionante: «Ordinary Joe» (de «Occasional Rain») ou «What Color is Love» (tema título do segundo álbum aqui referido) são exemplos extremos de perfeito equilíbrio entre a interpretação arrebatadora de Callier, os arranjos, a execução dos temas e as palavras. «Occasional Rain» começa assim: «For my openin’ line / I might try to indicate my state of mind / or turn you on / or tell you that I’m laughin’ / just to keep from cryin’ / pretty music, when you hear it, /
keep on tryin’ to get near it / a little rhythm for your spirit / but that’s what it’s for / c’mon in here’s the door.» E nós entramos. Ou melhor, mergulhamos. Porque só há uma forma de estar na música de Terry Callier – em completa imersão.
«Is it wrong or is it right / is it black or is it white / what color is love? / is it here or is it there? Is it really everywhere? / what color is love?» Estas canções surgiram numa altura em que a cor de pele se tinha revelado o tónico de revoluções sociais e políticas, mas Terry Callier canta-as como se todas essas revoluções fossem íntimas, privadas e individuais. À sua volta, Stepney desenha um luxuriante jardim de cordas e harpas que parece agarrar-se a cada nuance da voz, a cada lágrima cantada. Depois vem «You Goin’ Miss Your Candyman», congas, uma guitarra e um baixo que ajuda a contar a história (e que soa familiar por ter sido samplado pelos Urban Species nos anos 90) do mesmo homem que os Temptations cantaram em «Papa Was a Rolling Stone» - parece mesmo não haver rosas neste jardim e tom é quase sempre sombrio, sofredor. Afinal de contas, Callier é um cantor de Chicago, terra dos blues e dos lamentos electrificados.
Terry Callier é um daqueles homens que foram redescobertos exactamente porque há segredos que são impossíveis de guardar. No início dos anos 80, este cantor abandonou a música para poder assumir a custódia da sua filha de 12 anos. Para a sustentar arranjou um emprego como programador de computadores na Universidade de Chicago. No final dessa mesma década, a atenção ao passado soul dada por Gilles Petterson na cena rare groove de Londres transformou os velhos álbuns de Callier em preciosas peças de colecção. No início dos anos 90 os convites começaram a aparecer para espectáculos em Inglaterra e, lentamente, Callier voltou à música, nunca abandonando no entanto o seu emprego regular. Em 1998, Terry Callier editou «Timepeace», o seu álbum de regresso na Talkin’ Loud de Gilles Petterson. O álbum mereceu um prémio das Nações Unidas e lançou indesejada atenção sobre a sua carreira musical, completamente desconhecida no seu local de emprego, facto que provocou o seu despedimento. Ficou, certamente, o mundo a ganhar…
Há um par de anos, em Montemor-o-Velho, Terry Callier cantou com a mesma alma que se sente em discos como «Occasional Rain» e «What Color is Love»: com um tom que por vezes o aproxima de Nina Simone e uma entrega que é completamente física, Callier é um daqueles cantores de excepção que não se podem ignorar. Em, 1972, ano da criação destes dois álbuns, Terry estava no mesmo patamar de Marvin Gaye, Curtis Mayfield ou Isaac Hayes – verdadeira voz de uma geração que então celebrava até a liberdade de manifestar tristeza. As canções íntimas de Callier – sobre corações despedaçados, amores desencontrados – são o resultado de uma capacidade única de contar histórias, mantendo-nos suspensos na narrativa exposta em cada verso, em cada respirar. Não há outra forma de nos relacionarmos com Terry Callier – só a rendição absoluta e a audição repetida destes álbuns serve. Ou tudo ou nada. Não há meio-termo.

Terry Callier
Occasional Rain
Verve


5/5

Leonard Pirani (piano); Charles Stepney (produtor, arranjador, harpsichord, órgão); Sydney Simms (baixo); Bob Crowder (bateria); Terry Callier (guitarra); Kitty Haywood (soprano); Minnie Ripperton (soprano); Shirley Wahls (contralto); Earl Madison (violoncelo).
Chicago, 1972


Terry Callier
What Colour is Love
Verve


5/5

Kitty Haywood, Shirley Wahls, Vivian Harrell (coros); Louis A. Satterfield (baixo); Karl B. Fruth, Leonard Chausow (violoncelos); Bobby Christian, Alfred Nalls, Fred Walker (percussão); Donny Simmons , Morris Jennings (bateria); Ethel Merker, Paul Tervelt (fliscorne); Phil Upchurch (guitarra); Terry Callier (guitarra e vozes); Cyril Touff (harmónica); Edward Druzinsky (harpa); Don Myrick (saxofone alto, flauta); Charles Stepney (produtor, arranjador, piano eléctrico). Elliot M. Golub , Everett Zlatoff-Mirsky , Irving Kaplan , Jerry Sabransky , Joseph Golan , Ruth Goodman , Sol Bobrov , Theodore Silavin , William Faldner (cordas).


(críticas publicadas originalmente na jazz.pt)

3 comentários:

  1. Só há meses descobri o "What Colour Is Live", mas é um álbum que marca, seja descoberto aos 16 ou aos 33 anos!

    ResponderEliminar
  2. Mr Callier is the one of very few musicians to have touched me so much with music that I sometimes have to cry when I listen to it. The beauty of the songs on those album is such that listening to it can be a transcendental experience (yes, without the stimulus of drugs :) ). 33 is young to make contemplations about the afterlife but I know this for a fact, my funeral song has to be "Ordinary Joe"

    ResponderEliminar
  3. Olá você poderia me ajudar com a letra de You're goin miss your candyman?

    Eu procurei muito na internet, mas em nenhum lugar encontro...

    Valeu!

    Germano Dutra Neto

    ResponderEliminar