A Honest Jon’s é uma das lojas de discos de referência em Londres. Nos últimos anos, através de uma associação a Damon Albarn dos Blur, transformou-se igualmente numa das mais interessantes editoras com uma actividade que une as coordenadas do espaço e do tempo num brilhante catálogo.
A realidade é clara: a música tem vindo a mudar-se com crescente velocidade para um plano incorpóreo, onde existe liberta de uma dimensão física. As novas tecnologias subjugaram a música a uma nova ordem de ideias – reduzida à dimensão de “conteúdo”, a música é apenas mais um dos vectores onde assenta o verdadeiro negócio: o da comercialização de peças de hardware crescentemente sofisticadas e com cada vez maiores capacidades de “memória” e de espaço de armazenamento. Essa “memória”, no entanto, tende a apagar o carácter da música reduzindo-a toda a uma condição meramente funcional. Nesta passagem a outro plano de existência, a música tem perdido a sua própria memória: desaparecem as molduras gráficas que são reduzidas a minúsculos ícones, desaparecem as “liner notes” que são transformadas em hiperligações, desaparece o contexto. Em tempos idos, a indústria do Hi-Fi era orientada para o consumidor no pressuposto de que permitiria retirar o maior prazer possível da música. Mas hoje essa ordem natural alterou-se e é a música que parece orientada como mais uma forma de retirar o maior prazer possível do iPhone ou do iPod.
E é exactamente por isso que a actividade de editoras como a Honest Jon’s (www.honestjons.com) resulta tão crucial. Com distribuição assegurada em solo nacional pela Flur (www.flur.pt) , esta editora oferece várias portas de entrada para um universo onde as fronteiras de espaço e tempo são diluídas e onde o prazer da descoberta é acentuado.
O interessante neste catálogo é, precisamente, a sua liberdade: não existe uma linha nítida de exploração de uma ideia de Groove, como acontece na Soul Jazz, e muito menos um foco exclusivo numa estética ou numa região geográfica, como acontece nos catálogos da Soundway ou da Analog Africa. O fio condutor que une as diversas entradas no espantoso catálogo da Honest Jon’s é feito de outro impulso: entre a exploração do espaço protagonizada pelo recente exercício do Moritz Von Oswald Trio e o mergulho nos arquivos do Congo para «The World Is Shaking – Cubanismo From The Congo 1954-1955» vai uma incomensurável distância. Dois mundos, duas épocas, duas estéticas completamente diferentes. Práticas, ferramentas, atitudes quase opostas. Mas uma idêntica vontade: a de traduzir o seu próprio mundo, a de inscrever a sua época num devir histórico mais amplo. A Honest Jon’s é uma editora discográfica, mas poderia ser uma colecção privada de fotografia, tal a vontade que tem de documentar um mundo em permanente mudança. É a mesma vontade que anima os excelentes Hypnotic Brass Ensemble, colectivo que une as galáxias de Sun Ra, Fela Kuti e James Brown com o mesmo fôlego anímico que define os sons que se desprendem das «Open Strings» - onde passado e presente são aliás colocados em rota de colisão por via de respostas dadas por contemporâneos como Sir Richard Bishop a gravações de arquivo datadas dos anos 20.
A abordagem da Honest Jon’s à construção de um catálogo não deve ser analisada sem se considerar que o ponto de partida para esta aventura se encontrou, precisamente, nas prateleiras da loja de Portobello Road aberta desde os anos 70. Foi nessa loja que um jovem James Lavelle começou a trabalhar e terá sido ao dono que pediu as mil libras com que deu início à aventura Mo’ Wax. Porque ninguém consegue olhar para o stock de uma loja sem imaginar o que lhe poderia acrescentar. Desse manuseamento físico nascem as vontades que depois servem de base a aventuras como a que a Honest Jon’s agora protagoniza. A construção de um mundo onde a música – e não os artefactos que a permitem ler – ocupa o verdadeiro centro e justifica tudo o resto. Entre o Congo, Baghdad, Nova Iorque e Berlim ou entre a década de 20 do século passado e o presente não há fronteiras, nem distâncias. Cada uma dessas coordenadas é uma porta representada por um número de catálogo na Honest Jon’s: é possível cruzar todas essas portas ao mesmo tempo e beber a informação e a música contida em cada um dos lançamentos que a Flur agora disponibiliza entre nós. Segurando na mão capas que são completamente relevantes para a fruição do todo, deixando os olhos sorver a informação nelas contidas. Entendendo que a música não se pode reduzir a um ficheiro despido de toda a sua bagagem – e como se pode viajar sem bagagem?
(Texto publicado originalmente na revista Parq)
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário