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A realidade é clara: a música tem vindo a mudar-se com crescente velocidade para um plano incorpóreo, onde existe liberta de uma dimensão física. As novas tecnologias subjugaram a música a uma nova ordem de ideias – reduzida à dimensão de “conteúdo”, a música é apenas mais um dos vectores onde assenta o verdadeiro negócio: o da comercialização de peças de hardware crescentemente sofisticadas e com cada vez maiores capacidades de “memória” e de espaço de armazenamento. Essa “memória”, no entanto, tende a apagar o carácter da música reduzindo-a toda a uma condição meramente funcional. Nesta passagem a outro plano de existência, a música tem perdido a sua própria memória: desaparecem as molduras gráficas que são reduzidas a minúsculos ícones, desaparecem as “liner notes” que são transformadas em hiperligações, desaparece o contexto. Em tempos idos, a indústria do Hi-Fi era orientada para o consumidor no pressuposto de que permitiria retirar o maior prazer possível da música. Mas hoje essa ordem natural alterou-se e é a música que parece orientada como mais uma forma de retirar o maior prazer possível do iPhone ou do iPod.
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O interessante neste catálogo é, precisamente, a sua liberdade: não existe uma linha nítida de exploração de uma ideia de Groove, como acontece na Soul Jazz, e muito menos um foco exclusivo numa estética ou numa região geográfica, como acontece nos catálogos da Soundway ou da Analog Africa. O fio condutor que une as diversas entradas no espantoso catálogo da Honest Jon’s é feito de outro impulso: entre a exploração do espaço protagonizada pelo recente exercício do Moritz Von Oswald Trio e o mergulho nos arquivos do Congo para «The World Is Shaking – Cubanismo From The Congo 1954-1955» vai uma incomensurável distância. Dois mundos, duas épocas, duas estéticas completamente diferentes. Práticas, ferramentas, atitudes quase opostas. Mas uma idêntica vontade: a de traduzir o seu próprio mundo, a de inscrever a sua época num devir histórico mais amplo. A Honest Jon’s é uma editora discográfica, mas poderia ser uma colecção privada de fotografia, tal a vontade que tem de documentar um mundo em permanente mudança. É a mesma vontade que anima os excelentes Hypnotic Brass Ensemble, colectivo que une as galáxias de Sun Ra, Fela Kuti e James Brown com o mesmo fôlego anímico que define os sons que se desprendem das «Open Strings» - onde passado e presente são aliás colocados em rota de colisão por via de respostas dadas por contemporâneos como Sir Richard Bishop a gravações de arquivo datadas dos anos 20.
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(Texto publicado originalmente na revista Parq)
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