segunda-feira, 11 de maio de 2009

Soul: a woman's worth


Há uma razão para a soul se chamar “soul”. Clive Anderson, citado por Peter Guralnick em “Sweet Soul Music”, definia este género como sendo “feito por americanos negros que elevam o ‘sentimento’ (‘feeling’, no original) acima de tudo o resto.” Logo nesta definição é possível aceder a um ponto importante – o do carácter feminino da soul legível nessa emotividade muito própria. Numa caracterização algo simplista, mas nem por isso menos verdadeira, poderia argumentar-se então que a soul é fruto de um ponto de vista feminino sobre a vida, tal como o funk será a expressão de um lado mais masculino, mais físico. Nenhuma história poderá ilustrar melhor esta ideia do que a que rodeia o tema “Respect” que Otis Redding compôs e gravou em 1965, mas que Aretha transformaria num hit eterno em 1967. “I just lost my song”, terá Otis confessado a Jerry Wexler, patrão da Atlantic. “That girl took it away from me.” O homem de “The Dock of the Bay”, que viria a falecer cerca de seis meses após a “miúda” de Memphis ter transformado a sua canção num mega-sucesso, referia-se ao facto de Aretha ter elevado um simples pedido de respeito conjugal à condição de grito de liberdade e igualdade que se transformou mesmo num marco do movimento feminista americano. Na voz de Aretha, “Respect” passou a ser um manifesto: “a woman calling an end to the exhaustion and sacrifice of a raw deal with scorching sexual authority,” escreveu-se na Rolling Stone quando “Respect” garantiu o quinto lugar na lista de “500 Melhores Canções de Todos os Tempos”. Uma canção escrita por uma poderosa voz masculina da soul, que sublinhava o papel do homem na vida de um casal, passa, quando processada pelo filtro da voz da Rainha da Soul, a ser um hino ao papel das mulheres negras na sociedade em geral.
Nos Estados Unidos, a transformação do mais primal rhythm n’ blues numa mais sofisticada soul ocorreu no mesmo período em que as conquistas do Civil Rights Movement foram sendo registadas: em 1964 o Civil Rights Act baniu a descriminação ao nível do emprego e, por exemplo, das casas de banho públicas; no ano seguinte, o Voting Rights Act repôs o direito de voto para as minorias iletradas (os negros, claro…); e em 1968, outra lei pôs fim à descriminação na venda ou aluguer de habitações. Nesse espaço de tempo, as mulheres – Aretha, claro, mas também Etta James, Tina Turner, Vicky Anderson, Marva Whitney, Lyn Collins, Gladys Knight, Diana Ross, Nina Simone, Ruth Brown, Tammie Terrell, Minnie Ripperton… – deram um contributo decisivo para a evolução da soul, imprimindo a um género dominado por homens (não apenas cantores, mas sobretudo produtores e editores) uma marca que essa forma de expressão carrega desde sempre.
Quando Aretha cantou “Respect” tinha razões para querer gritar liberdade – o seu casamento com Ted White escorregou para os terrenos da violência doméstica e, por outro lado, o contrato com a Columbia não tinha revelado frutos alguns. A mudança para a Atlantic e uma sessão apenas no estúdio Muscle Shoals, no Alabama, bastaram para colocar tudo no sítio. Com “I never loved a man the way i loved you”, de 67, Aretha tinha chegado à soul. O álbum abria com “Respect” e fechava com “A change is gonna come”: já não havia dúvidas sobre o que a soul queria dizer na voz de todas estas mulheres – liberdade, afirmação, respeito… Alma. Exactamente a qualidade comum a todas as propostas que reunimos nas páginas que se seguem – representantes no presente da soul que a rainha Aretha ajudou a definir. Ledisi, Beyoncé, Jill Scott, Angie Stone, Sharon Jones ou Amy Winehouse são a personificação dos diferentes caminhos que a soul tomou em 2007. Mas este é um género em constante mutação e os novos álbuns de Erykah Badu ou Mary J Blige que se adivinham para os próximos meses poderão sugerir outras nuances, outras formas de se chegar ao destino. A ouvir.

(Texto já velhinho, publicado originalmente na Op., mas que ainda faz sentido...)



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