segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Os discos e a ilha deserta
Não tenho a certeza absoluta de ser sempre entendido quando digo que por vezes o espaço que separa dois discos - ainda que seja em termos aristotélicos infinitamente pequeno (ver imagem acima) - pode ser tão revelador como os próprios discos em causa. O que falta diz tanto como o que está, penso eu, não só por causa das relações que estabelecemos entre os discos e que os levam a partilhar espaço (e que nunca é tão simplista ao ponto de ser meramente alfabética - os meus discos de Karen Dalton estão na secção de soul, mas os de Vashti Bunyan estão na estante do PopProgFolkRock...), mas também porque no meio, invisiveis, estão todos os discos que ainda planeamos adquirir. Por isso, a minha colecção de discos ajuda a definir-me, claro, mas não completamente pois nada diz dos meus desejos, dos meus objectivos pessoais a alcançar. Vem tudo isto a propósito de quase nada, mas um quase nada que nos últimos tempos me fez perder alguns minutos de sono (não muitos, que durmo bem, obrigado): os discos que proverbialmente nos acompanhariam para a ilha deserta (equipada com ar condicionado e sistema de som, como é óbvio).
O conceito de Discos Que se Levariam Para Uma Ilha Deserta simplesmente não faz sentido, a menos que se pudessem levar todos os discos para uma ilha deserta. E mesmo assim seria uma ilha estúpida, sem gente, sem filmes, sem livros, sem lojas de vinhos e museus. Mas levemos a sério o conceito - 100 Discos A Que Se Resumiria Uma Colecção, porque é disso que se trata quando se evoca a tal ideia absurda da ilha deserta, penso eu. 100 ou 10 ou 1000. Não faz diferença para o caso. Porque, e esta foi a conclusão a que cheguei durante os tais minutos roubados ao sono, se eu só pudesse ouvir esses 100 discos (ou 10 ou... já perceberam a ideia) a minha vida seria muito aborrecida.
Vejamos o caso de Madlib: recentemente dei conta por aqui dos planos do produtor para um ano recheado de edições. Não tardou para que fóruns como o Soulstrut se agitassem - que o homem é doido, que já não há paciência, que nem ele será capaz de fazer 12 edições relevantes. E toda essa gente perde o ponto (misses the point, em inglês): Madlib sabe certamente que não vai editar 12 desses discos da ilha deserta. O que ele vai fazer é abrir-nos as portas para o seu pensamento criativo, vai permitir que ouçamos as falhas, os acertos, e todos os gestos intermédios. O que nos traz de volta à questão dos discos da ilha deserta. Eu sei que o que faz brilhar a discografia de Marvin ou de JB são os incontáveis discos de soul que são menores porque a história ou o tempo ou as condições em que foram originalmente gravados ou o talento dos seus intervenientes não lhes fizeram justiça. Mas a soul - ou o rock, ou o jazz ou qualquer outra coisa - só faz sentido com esse corpo imenso de tentativas e erros. A minha colecção está muito depurada por anos e anos de trocas, presentes dados a amigos, discos vendidos no eBay ou na Cash Converters, outros que se perderam ou de que se deixou de gostar. Já a espremi de todas as maneiras e feitios. E, ainda assim, não fiquei apenas com obras primas. Longe, tão longe disso. Mas todos os discos que resistiram ao tempo e às purgas alcançaram essa proeza por uma qualquer razão. Porque contêm neles pormenores que enaltecem outros discos, por exemplo: o primeiro disco pop onde se usou o som da sitar indiana, mas que não chega aos calcanhares do «Tomorrow Never Knows», ou as primeiras tentativas de enquadrar a síntese em temas pop com discos Moog que tentavam dar uma roupagem inocentemente electrónica a clássicos do country ou da Broadway ou algo igualmente palerma. Discos que falharam tremendamente, mas que ainda assim conseguiram a proeza de preparar caminho, de apontar pistas e estratégias, de experimentar novas abordagens técnicas. De arriscar, enfim. Um pouco como o piloto de Fórmula 1 cujo papel é ficar sempre em segundo, abrindo caminho para a estrela da equipa. Levar apenas 100 discos para a ilha e esquecer estas modestas candidaturas à eternidade (ou a um lugar no Top 20) seria um erro tremendo. Dizem os sábios que mais importante do que chegar ao destino é ir caminhando, ideia que parece ter sido feita à medida de quem colecciona discos (ou outra coisa qualquer). Mais importante do que chegar à ilha deserta com 100 discos debaixo do braço (continuo a pensar como é que lá se chegaria, como é que se protegeriam esses 100 discos do sal, da água, do sol, da queda imprevisivel de côcos...) é o percurso por todas as lojas/sites/feiras/casas de amigos que nos leva a encontrar esses discos e a estabelecer entre eles relações dificeis de explicar (os tais espaços que os separam). E igualmente mais importante do que chegar ao destino é continuar a caminhar, a procurar novas coisas que se possam intrometer entre os discos da foto, obrigá-los a mudar de sítio, fazê-los perder o estatuto que agora possuem nas nossas colecções, ou iluminá-los de uma forma que não julgávamos possível. Em vez de levar discos para a ilha deserta, preferia mesmo trazer a ilha deserta para perto de casa. Na verdade, a minha sala de discos é uma espécie de ilha deserta, mas cheia de discos, onde estão os 100 que outros levariam para um sítio qualquer e os restantes 9 mil e 900 (ou algo assim) de que eu também gosto.
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Acho genial o conceito de "ilha estúpida".
ResponderEliminar:)
ResponderEliminar"Vejamos o caso de Madlib: recentemente dei conta por aqui dos planos do produtor para um ano recheado de edições. Não tardou para que fóruns como o Soulstrut se agitassem - que o homem é doido, que já não há paciência, que nem ele será capaz de fazer 12 edições relevantes.
ResponderEliminarE toda essa gente perde o ponto (misses the point, em inglês): Madlib sabe certamente que não vai editar 12 desses discos da ilha deserta. O que ele vai fazer é abrir-nos as portas para o seu pensamento criativo, vai permitir que ouçamos as falhas, os acertos, e todos os gestos intermédios."
Até fiquei com interesse renovado. Porque se a série de 12 discos num ano, até para o Madlib parece ser muita fruta, posto em termos de ele vai "abrir-nos portas para o seu pensamento criativo, falhas, acertos e gestos intermédios", torna-se mais estimulante. Faz muito sentido. A partir de agora é nisto que acredito.
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Uma palavra para os 2 posts acima, já que aqui fica na familia Madlib, o disco do Oh No é fantástico!! Já tinha gostado do Experiment. O Ethiopium pulveriza qualquer material antigo dele que lhe conheço. Em fogo! 1 dos discos 09 que mais me agarrou. Seguramente num top 10. :)