A Waxpoetics, agora também editora de discos, lançou a obra prima do recentemente desaparecido Lyman Woodard, músico-operário de Detroit.
Vivemos actualmente um estranho fenómeno, maximizado pela idade digital, em que a música existe toda num mesmo e simultâneo plano: o passado e o presente, o raro e o comum, o histórico e o obscuro. Está tudo disponível. Os efeitos a nível criativo desta nova realidade podem ser tremendos e um estudo atento dos caminhos percorridos pelos mais desafiantes músicos dos dias de hoje pode revelar isso mesmo. Mas na década de 60 ou de 70, as referências dos músicos passavam essencialmente pelos eixos facilitados por três planos – o que a rádio tocava, o que a indústria disponibilizava e, claro, pelo que a realidade circundante lhes oferecia em termos de experiência directa com a oferta de concertos. E tendo essa ideia em conta, poucos locais do mundo deveriam ser tão interessantes para um músico viver como Detroit: excelentes estações de rádio abertas a múltiplas sonoridades, imensas lojas de discos onde a soul psicadélica de Stevie Wonder dividia espaço com o rock abrasivo dos MC5 e, claro, uma vibrante cena de clubes alimentada pelos músicos profissionais que procuravam a Motor City para trabalhar, oferecendo entretenimento aos milhares de funionários da indústria automóvel que definia o tecido social da maior cidade do Michigan.
Cenas locais como a de Detroit têm funcionado como autênticos filões nas escavações de descoberta do passado efectuadas por coleccionadores de todo o mundo. Um dos artefactos expostos com essa continuada investigação foi o álbum “Saturday Night Special” da Lyman Woodard Organization, «uma colecção funky de jazz operário que, até aos dias de hoje, se mantém como um testamento às espantosas relíquias de expressão artística nascidas neste activo lugar e época da música americana», escreve John Kirby nesta recente edição da Waxpoetics (esta revista tem-se igualmente dedicado à reedição de obscuras pérolas do passado; no caso de “Saturday Night Special”, uma edição original da Strata – não confundir com Strata East –, a Waxpoetics lançou uma edição limitada a 1500 exemplares numerados em vinil de altíssima qualidade). Entretanto, e por uma infeliz coincidência, esta reedição acordada com o próprio artista acabou por ser praticamente coincidente com o desaparecimento de Lyman Woodard, que faleceu aos 67 anos em Fevereiro deste ano.
«Através dos anos a estética da Motor City tem sido incorporada no trabalho de músicos tão variados como John Lee Hooker, Aretha Franklin, Smokey Robinson, Bob Seger e Donald Byrd. O grande Yusef Lateef, um dos principais arquitectos do som de Detroit durante os anos 50, mais tarde prestou tributo a este fenómeno com o seu álbum “Lateef’s Detroit”. Mas é no trabalho de um profissional contemporâneo, um tal de Lyman Woodard, que a estética de Detroit encontrou a sua mais elevada expressão até aos dias de hoje», escreve o notório John Sinclar nas notas de capa originais da rara edição da Strata que facilmente atingia os 500 dólares quando surgia no eBay. Sinclair, fundador dos White Panthers, poeta e activista radical da década de 60, foi igualmente manager dos MC5 e uma das mais proeminentes figuras na Convenção Democrática de 68 que atraiu até Chicago activistas e poetas como Allen Ginsberg. Em 69, Sinclair que era observado pelo FBI, foi preso por passar dois charros de marijuana a um agente policial e condenado a 10 anos de prisão, facto que motivou protestos por parte de protagonistas do lado mais engajado dessa época, como foi o caso de John Lennon que sobre ele escreveu a canção «John Sinclair». Uma verdadeira autoridade, portanto, que garantia em 1975, nas já referidas notas de capa de “Saturday Night Special”, que «Woodard, um residente da área próxima ao West Side de Detroit nos passados 10 anos, tem uma história musical quase tão rica e complexa como a própria história da música de Detroit».
De facto, Lyman Woodard era um profissional, no verdadeiro sentido da palavra, tendo, como tantos outros músicos, começado por orbitar na esfera da Motown: gravou com vários artistas dessa grande editora de soul, foi director musical de Martha and the Vandellas e angariou salários no circuito de clubes com um trio que incluía o baterista Melvin Davis e o guitarrista Dennis Coffey. Mais tarde fundou então a sua organização com a colaboração de veteranos da cena de Detroit como Ron English, guitarrista que tocou com Marcus Belgrave ou Phil Ranelin. Em “Saturday Night Special” o que impressiona é a fluidez da música, com os teclados de Woodard – piano eléctrico, órgão e até mellotron – a servirem de ponte entre os universos do jazz e do funk, com colorações latinas a darem um sinal extra de que esta é música (gravada originalmente em duas sessões de Novembro de 73 e lançada em 1975) inserida numa excitante época de mil possibilidades. Hoje, o olhar de um músico pode lançar-se em simultâneo sobre diferentes cenas, estéticas e épocas da música, aproveitando o extraordinário trabalho de redescoberta do passado efectuado por inúmeras editoras apostadas em relançar música há muito esquecida. Mas em 1973, o olhar de Woodard limitava-se ao que testemunhava nos clubes e à música que ouvia no rádio ou em casa. “Saturday Night Special” é por isso música ancorada no seu tempo, mas nem por isso datada. Revelando o mesmo espírito aventureiro que guiou algumas das estratégias de fusão de Herbie Hancock, Lyman Woodard e a sua organização oferecem-nos uma sólida experiência de groove, com o jazz a servir como a língua franca com que todos os músicos envolvidos comunicam. Essencial.
(Texto publicado originalmente na revista Jazz.Pt)
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
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