domingo, 15 de novembro de 2009

Em busca do disco perdido

«Ze 30» e «Horse Meat Disco» lançam achas para a fogueira do revisionismo disco que marca parte da produção mais interessante do presente. Tudo isto pela mão da Strut Records.

Com a imposição do formato CD, na transição da década de 80 para a de 90, surgiu igualmente a figura do curador da memória passada na pele do coleccionador de vinil. DJ umas vezes, produtor outras, mas tantas vezes alguém simplesmente interessado nas coordenadas exploradas no passado, esta figura recolheu e cuidou de artefactos da história da música a que a indústria discográfica, demasiado ocupada a vender pela segunda vez os mesmos discos às mesmas pessoas, não estava a prestar atenção. E depois, com o crescimento em importância da cultura da música de dança, apoiada constantemente numa revisão em alta do passado por via do sampler ou do próprio gira-discos, surgiram as visitas guiadas à memória de determinadas correntes pela mão destes especialistas.
Talvez tenha sido durante o reinado acid jazz – que coincidiu igualmente com a explosão sampladélica do hip hop - que se tenha atribuído importância ao acto de reciclar as rare grooves que serviam de pedra de roseta a toda essa cultura. As compilações «Blue Breakbeats» da Blue Note são disso um bom exemplo. Claro que não foi essa a primeira vez que se olhou para o passado com essa perspectiva: já na década de 70 as compilações «Nuggets» investigavam o legado americano de garage rock psicadélico em busca dos primeiros capítulos de uma história que viria a desaguar no punk – um dos organizadores era aliás Lenny Kaye, músico de Patti Smith. Mas Nuggets era claramente uma excepção numa indústria mais interessada em re-empacotar êxitos do que em olhar para a música que tinha escpado às alargadas malhas do sucesso.
Foi portanto na década de 90 que se consolidou este hábito de iluminar largas porções do passado que não tinha logrado entrar para os livros de história. Nesse processo surgiram editoras especializadas em vasculhar artigos e em recuperar para o presente música que há muito estava confinada a poeirentos arquivos: a Soul Jazz, a Harmless ou, entre várias outras, a Strut são exemplos óbvios.
Depois de ter visto a sua actividade interrompida em 2003 – quando no seu catálogo já incluía pérolas preciosas que recuperavam a memória do afrobeat da Nigéria, do disco de Nova Iorque ou do funk do Brasil – a Strut regressou à actividade em 2008 mercê de uma proveitosa associação à K7! E desde então não tem parado, prosseguindo o trabalho interrompido em 2003 e oferecendo-nos visitas guiadas à actividade dos estúdios Compass Point das Bahamas, ao Calypso das Caraíbas, à obra de Kid Creole e ao Italo Disco, entre outros títulos. Desta vez, a Strut também inverte a perspectiva e acrescenta à recuperação do passado uma sólida actividade de busca no presente dos desenvolvimentos originados precisamente pela música que lhes alimenta parte generosa do catálogo: edições dos Breakestra (pioneiros na renovação do funk) ou a série Inspiration Information – que promoveu o encontro de artistas como Mulatu Astatke e os Heliocentrics ou até, a editar em breve, de Jimi Tenor e Tony Allen – não permitem que se desenvolva sobre a Strut outra ideia que não seja concordante com a de uma editora de pés firmemente apoiados no presente.
Na mais recente leva de edições há duas compilações de interesse acrescido: «Ze 30», dedicada à história da seminal editora Nova Iorquina que explorou os canais de comunicação abertos entre a cultura disco sound e o punk, e ainda «Horse Meat Disco», compilação que ilustra o espírito de um clube a operar actualmente em Londres sob a orientação de Jim Stanton (ligado à revista Jockey Slut) e James Hillard (em tempos na mítica Nuphonic).
Com as compilações «Disco Not Disco» e «Disco Itália», a Strut já tinha explorado esta estética, mas o facto de ter encontrado mais dois ângulos para abordar esta área da música de dança só realça o rigor com que olha para um passado riquíssimo.
A Ze, claro, ajudou a definir os rumos da Nova Iorque mais desafiante do arranque dos anos 80 e na música dos Was (Not Was), Lizzy Mercier Descloux, Alan Vega, Kid Creole, Material ou Aural Exciters encontram-se as pistas para descodificar boa parte da produção de gente louvável como os LCD Soundsystem ou os Rapture. E se há bandas que seguem no presente a via deste disco sound angular é precisamente porque esta música se recusa a ficar encerrada no passado. E pode-se dizer exactamente o mesmo da música seleccionada para «Horse Meat Disco»: este clube inspira-se no período dourado da história de Nova Iorque que viu a música alargar-se até às 12 polegadas de vinil e o DJ a ganhar protagonismo em clubes como o Loft ou o Gallery. Na música de Karen Young, K.I.D., Gino Soccio, Gregg Diamond ou Tamiko Jones escolhida para esta compilação encerram-se verdadeiros manifestos de liberdade rítmica, pensados com o único propósito de realizar as visões do DJ que do alto da sua cabine orquestrava os movimentos na pista de dança. Música de realidade, portanto, mas também de fantasia e até de utopia social e política (títulos como «Love Me Tonight» ou «Let it Flow» indicam isso mesmo).
Com os olhos no passado, mas a cabeça decididamente ancorada no presente, a Strut prossegue a sua missão, em busca dos discos perdidos.

(Texto publicado originalmente na revista Parq)

Nota adicional:
Entretanto saiu Zevolution - Ze Records Re-Edited, uma compilação que parte de Ze 30 para reinventar o catálogo dessa histórica editora de Nova Iorque à luz da cultura de re-edits. Entre novas propostas de gestão do espaço rítmico assinadas por Soul Mekanik, PIlooski, Richard Sen, Greg Wilson, Run m' Tug, Todd Terje e Idjut Boys encontramos também um edit de Humberto Matias, aka Social Disco Club, para «Cowboys & Gangsters» de Gichy Dan's Beachwood Nº 9. O que já nem deveria espantar ninguém tendo em conta o impressionante volume de trabalho apresentado em tempos mais recentes, mas que ainda assim - a mim pessoalmente - me enche de orgulho. Go Humberto, go!

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