Nathan Davis é mais reconhecido como um pedagogo do que como um músico incendiário. «65-76» vem alterar essa percepção.
Que ideia teríamos hoje da história do Egipto, por exemplo, se os arqueólogos não tivessem ao longo das décadas trabalhado para resgatar às areias do tempo todos os artefactos, monumentos e textos que hoje nos permitem compreender de forma profunda essa grande civilização? A história do jazz moderno também está cheia de antecâmaras, passagens secretas e pequenos tesouros que só o trabalho de investigadores e coleccionadores dedicados tem permitido revelar. O caso de Nathan Davis é a esse nível absolutamente notório. A antologia «’65-76» que a cada vez mais incontornável Jazzman acaba de editar é um espantoso trabalho de recolha e investigação que permite finalmente traçar o percurso de um excelente músico que sempre trabalhou arredado dos focos de atenção e que por isso acabou mais ou menos esquecido nas páginas que contêm as crónicas da época a que se refere o título deste lançamento.
O álbum «Peace Treaty» que Nathan Davis gravou em Paris em 1965 com músicos ligados a Jef Gilson – o título referia-se às conversações secretas tidas entre os governos americano e norte-vietnamita na capital francesa no ano de 65 com o objectivo de acabar com a guerra no sudoeste asiático – marcou o arranque de uma irregular e dispersa discografia como líder para este músico. Davis tinha cumprido serviço militar em Berlim entre 1960 e 1962, mas era um pacifista por natureza convencido de que a paz merecia ser celebrada. A vida militar na Europa também lhe tinha mostrado outro mundo, que até a nível profissional lhe oferecia mais garantias. Daí que o salto para Paris tenha resultado natural: a cidade-luz oferecia uma nova perspectiva de vida e outro nível de dignidade a quem procurava escapar à América pré-Movimento dos Direitos Civis.
Na Europa, Davis gravou com grandes nomes como Kenny Clarke, Art Blakey e Eric Dolphy, mas as suas próprias sessões como líder foram registadas para pequenas etiquetas tendo-se tornado extremamente raras ao longo dos anos, facto que as coloca apenas ao alcance de dedicados coleccionadores capazes de pagar as centenas de euros que por vezes atingem nos mercados especializados.
Foi em Paris que o jazz de Nathan Davis se tornou mais aventureiro: porque trabalhava regularmente, facto que lhe permitia desenvolver as suas capacidades nos saxofones tenor e soprano e também na flauta, mas também por causa das alianças que estabeleceu. No clube Le Chat Qui Piche, por exemplo, trabalhou de perto com Eric Dolphy e Donald Byrd num “gig” que lhe abriu as portas da modernidade. «O Eric ensinou-me a tocar sons múltiplos, três notas de cada vez, aquilo que o Trane andava a fazer…», revela Davis nas excelentes notas de capa de «’65-76» assinadas por Francis Gooding. Apesar da morte inesperada de Dolphy em Berlim em 1964, que afectou Nathan Davis de forma profunda, a sua música continuou a evoluir e, a partir de 65, o saxofonista realizou algumas sessões para pequenas etiquetas como a Saba ou a SFP.
A forma como as capacidades de Davis foram evoluindo está igualmente ligada à sua personalidade naturalmente curiosa – estudou etno-musicologia na Sorbonne, por exemplo, facto que claramente teve impacto nalguma da sua música. Paralelamente à sede de saber, existia igualmente em Davis um profundo desejo de partilhar conhecimentos que o levou a estabelecer um curso na Academia Americana de Paris. Com o tempo, esse curso ganhou notoriedade suficiente para conduzir a um convite da universidade de Pittsburgh. Davis mostrou-se inicialmente muito reticente em aceitar o convite - «eu vivi em Pittsburgh e os negros não podiam ir à universidade», refere o músico nas notas de capa de «’65-76» - mas acabou por aceder. Os primeiros anos foram muito complicados, com as tensões raciais e políticas ecoadas no sistema universitário, mas Davis acabou por se impor como um pedagogo generoso. Nos anos seguintes, Davis viajou e levou o seu jazz a cruzar-se com África, com a Turquia e com a antiga Jugoslávia, procurando sempre que a música fosse uma linguagem de diálogo. As gravações incluídas em «’65-76» são testemunhos desse empenhamento em expandir a sua linguagem – do bop ao jazz modal, dos cruzamentos com as polirritmias africanas até ao funk declarado de algumas das suas gravações mais tardias. «’65-76» tem o mérito de disponibilizar finalmente música que só existia em prensagens muito raras. Como se mais uma antecâmara se abrisse após muito tempo escondida dos olhares modernos. A música aí encerrada é magnífica, honesta e vibrante, um verdadeiro tesouro agora ao alcance de todos.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
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