quarta-feira, 24 de junho de 2009

Jazz Bridges # 17: Heavenly Sweetness - Harmonia Celestial

Jazz do espírito com sede em Paris: a Heavenly Sweetness procura a ponte entre o passado e o presente.


Na coluna do passado número, comecei por garantir que as ligações entre o jazz e África são remotas e profundamente espirituais. Por isso, não é surpresa que a faixa de abertura de “Earth Blossom”, raridade de John Betsch inscrita em 1974 no catálogo da Strata East (editora abordada na Jazz Bridges publicada no número 11 da jazz.pt), tenha o título “Ode to Ethiopia”. Mais: em “Cry of the Floridian Tropic Son”, de Al Rahman, alter-ego de Doug Carn (que gravou extensivamente para a Black Jazz Records), há temas como “Casbah” ou “Tropic Sons” que remetem directamente para o continente negro. E quando não é África, é um difuso oriente que se adivinha referenciado em lançamentos de Don Cherry, Doug Hammond (fundador da Tribe, editora que juntamente com a Strata East e a Black Jazz forma uma espécie de santíssima trindade do jazz espiritual) ou Anne Wirz. Todos estes nomes fazem parte do catálogo da Heavenly Sweetness, editora de Paris apostada em cruzar novas produções com recuperações de pérolas perdidas no passado.
Os responsáveis da Heavenly Sweetness não escondem o que lhes vai na alma: em entrevista a uma publicação online revelavam andar imersos na compilação “Spiritual Jazz” da Jazzman (também abordada por aqui) e a ouvir uma gravação de Gracham Moncur III para a Actuel; um dos primeiros maxis que editaram incluía uma versão de “The Creator Has a Master Plan” de Pharoah Sanders e outra de “Maiden Voyage” de Herbie Hancock; criaram alianças a velhas glórias como Doug Hammond ou até Byard Lancaster de quem editaram um single de sete polegadas (verdade, o formato ainda existe!) com dois temas: “Saint John Coltrane” e “Blue Train”. A filiação estética da Heavenly Sweetness não podia ser mais clara, mas o interessante é o facto de não serem meros revisionistas, procurando em estetas do presente como Carlos Niño ou Kieran Hebden (Four Tet) alianças que prolonguem o legado do jazz exploratório que mais lhe interessa.
Peça central do catálogo da Heavenly Sweetness é, sem dúvida, “Earth Blossom”, registo perdido assinado por The John Betsch Society em 74 para a Strata East e finalmente colocado ao alcance de meros mortais que não têm os cerca de 200 dólares por que este álbum normalmente troca de mãos. Betsch, baterista nascido na Florida, mas com um percurso que o conduziu até à capital do country, Nashville, durante a era do flower power, ingressou em 1971 num curso da Universidade do Massachusetts orientado por Archie Shepp e Max Roach. Iluminado pelo afrocentrismo propagado na UMass, mas também pelo espírito livre pós-Woodstock que o tinha levado a participar num psicadélico álbum de Tim Hardin que a Columbia nunca editou, Betsch criou a sua Society em Nashville onde gravou, a 11 de Janeiro de 74, este incrível “Earth Blossom”. Contidamente free, subtilmente psicadélico, este álbum resulta de um compromisso entre uma prática estruturante e um desejo de liberdade, revelando momentos absolutamente tocantes, como é o caso do atmosférico tema-título. John Betsch vive actualmente em França, e daí a ligação à Heavenly Sweetness, e goza os frutos de um vasto currículo que levou o seu caminho a cruzar-se com os de Archie Shepp, Abullah Ibrahim, Mal Waldron ou Steve Lacy. No seu álbum descobre-se também a chave que anima todo o catálogo da Heavenly Sweetness ou carreiras como a de Carlos Niño (cujos recentes “High With a Little Help From” ou “Spaceways Rádio Collage” são deliciosas pérolas de elevação estratosférica) e, a espaços, Madlib: o entendimento do jazz como uma chave para descodificar uma vibração superior, ligando-se às raízes (África) e a novas formas de pensamento (oriente). A Heavenly Sweetness acrescenta um generoso dado novo: apesar de procurarem garantir uma certa “autenticidade” nas gravações que efectuam agora – procurando no take único o registo dos mais genuínos impulsos dos músicos – não recusam o tempo em que vivem e as novas tecnologias electrónicas quando trabalham com os produtores já referidos. Na arte da remistura vêem uma forma de reequacionar as coordenadas que lhes orientam os passos. E a cada novo sete polegadas vão redesenhando o futuro.

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