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Em 1983, Steve Stein convenceu o seu amigo Douglas Di Franco (Double Dee) a participar num projecto de elaboração de uma remistura para o tema “Play that beat mr dj” de G.L.O.B.E. & Whiz Kid. No júri que escolheria o vencedor do desafio lançado pela Tommy Boy estavam Afrika Bambaataa e Jellybean Benitez, dois importantes protagonistas da emergente cultura hip hop. “The Payoff Mix” conseguiu o primeiro lugar sem dificulades, obtendo aplausos unânimes por parte dos membros do júri. Nos cinco minutos e vinte e quatro segundos desse momento fundador da série de três lições que se revelariam visionárias estão ideias decisivas para se compreenderem as três últimas décadas de criação. Mais importante do que o facto de Stein e Di Franco não terem sido dotados das mesmas doses de melanina que a maior parte dos habitantes de South Bronx é a sua capacidade extrema de transformar cada uma das suas criações num depósito de marcas aurais de uma extensíssima cultura pop.
Em 1983, Double Dee & Steinski uniram os universos da rádio e das block parties, da televisão e do cinema, do hip hop e do disco, do funk e do electro, assumindo-se como herdeiros de uma tradição que se estendia para lá do Bronx até aos pioneiros da manipulação de fita magnética – e só aí encontrava-se uma linha que unia a academia de Pierre Schaeffer, o laboratório de Delia Derbyshire e as pretensões pop da dupla Dickie Goodman e Bill Buchanan que assinou o “novelty record” “Flying Saucer”: “We interrupt this record to bring you a special bulletin. The reports of a flying saucer hovering above the city have been confirmed.”
Mesmo quando o hip hop gritava “agora!”, Steinski e Double Dee perceberam que as possibilidades abertas pela manipulação de fita e um generoso espírito arquivista serviam um propósito maior. As Lessons de Double Dee & Steinski – a inaugural “Payoff Mix” que lhes valeu o prémio da Tommy Boy e as subsequentes “James Brown Mix” e “The history of hip hop” – eram na verdade um comentário a uma cultura nascente que entendiam ser não apenas fruto de um presente em ebulição, mas de um longo processo histórico que abraçava a ideia de colagem – de pedaços de fita, de pedaços de história, de pedaços de música…
Apesar de terem as suas criações confinadas a rodelas de vinil de formato promocional e circulação limitada, Double Dee e Steinski viram o culto crescer ao longo dos anos. Cut Chemist e Dj Shadow, sem se conhecerem ainda, criaram ambos uma “Lesson 4” que pretendia continuar a história e adoptar um mesmo olhar generosamente inclusivo sobre a história do hip hop que nas mãos dessa nova geração de djs passou a explorar ligações ao rock psicadélico, ao jazz mais livre ou aos grooves do Brasil. Para estes manipuladores, a memória nunca teve balizas – pensem em Steinski a tocar baile funk no Pitch ou Shadow a divulgar o hiphy no Lux – e sempre procurou o futuro. Então, afinal de contas, e como o próprio Steinski pergunta no título da há muito aguardada antologia das suas obras – “What does it all mean?” Simples: a memória é livre, não obedece a códigos de direitos de autor e navega por todas as águas. Essa liberdade de movimentos é, em si mesma, um comentário tremendo a uma sociedade que se agarra cegamente a um código de autor elaborado antes da Internet e das novas tecnologias terem redimensionado o mundo. Não é acidente este crucial disco sair na mesma illegal art que lançou “Feed the animals” de Girl Talk… “Sampling is not a crime”, diz o bumper sticker de Steinski.
(Texto publicado na última edição da revista Op., # 27)
Muitas notas para tirar daqui, muito bom. Eu concordo que existam bastantes "forças de bloqueio" (?) em relação ao Lil'Wayne. Contra mim falo, porque ainda não percebo o trabalho dele. Pode ser.
ResponderEliminarPor outro lado, gosto do The-Dream, como gosto dos Lemon Jelly quando, também, se envolvem na samplagem.
Sei que se não fosse o sampling não estávamos aqui, acho.
Talvez não esteja tudo perdido para o meu lado. :)
Gaudio, verifica lá no Blitz que inclui os Melhores de 2008 a entrada sobre o Lil Wayne...
ResponderEliminarLol
ResponderEliminarMesmo que a evidência o pareça indicar, juro que não sou guardião de templo algum (todos o negam, não é?).
Timbaland, Pharrell, The-Dream também, mas menos, gosto. :)
Agora vou ali acima ouvir o Sr, Franco. :)
Obrigado
1 abraço