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O caso jamaicano, no entanto, foi sempre particular: depois de Bob Marley ter emergido como uma estrela na década de 70, embora com o seu som “amaciado” para os ouvidos ocidentais em estúdios de Londres, a cultura de sound systems da Jamaica impôs-se como uma espécie de farol criativo, informando desenvolvimentos tão importantes como a cultura de djs que hoje gera super-estrelas, a arte da remistura, o estúdio como instrumento e a ideia de que um gira-discos e um microfone podem ser ferramentas suficientes para conquistar o mundo – não esquecer que Kool Herc, pioneiro do hip hop, era jamaicano. Mas se a “ética” musical jamaicana influenciou destinos musicais por todo o mundo, isso não significa que o mundo conheça ou entenda de forma profunda o que é a Jamaica. Questões culturais, económicas, políticas e sociais muito complexas abriram parte da orla costeira ao mercado turístico, mas mantiveram o resto da ilha refém de uma intensa actividade criminal e por isso fechada aos olhos ocidentais. O canadiano Ryan Moore, que opera a partir da Holanda como Twilight Circus, ainda recentemente confessava à revista britânica Woofah (leitura fundamental para todos os que tiverem um interesse sério na música mais comprometida com sub-graves) os dissabores da sua aventura jamaicana, que envolveram, claro está, muitas armas. A Jamaica encontra-se por isso na delicada posição de um país que gera uma cultura que muitos amam, mas que possui um território que poucos conhecem.
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Com passaporte canadiano – sendo que o Canadá é outro importante destino da diáspora jamaicana, veja-se a série de edições «From Jamaica to Toronto» da Light In The Attic – Beth Lesser viajou com frequência para a ilha das Caraíbas com o seu marido, para fotografar os protagonistas da cena musical local para o seu fanzine Reggae Quarterly. A sua dedicação e amor genuíno pela cultura serviram-lhe de salvo-conduto e ofereceram-lhe a rara oportunidade de captar estrelas de diversas dimensões no seu dia-a-dia, longe dos filtros impostos pelas editoras: Gregory Isaacs em frente da sua loja de discos, African Museum, Papa Screw a ouvir discos, Cocoa Tea encostado a um velho carro num dos notórios becos de Kingston, um jovem Tenor Saw (a voz do enorme «Ring The Alarm») no Youth Promotion Center. A lista continua, é imensa e reveladora. As fotos de Beth Lesser têm a extrema qualidade de atentar tanto às personagens que colocam em primeiro plano, como ao cenário que as enquadra, quase sempre feito de velhas tábuas, redes de capoeira e edifícios decrépitos. É importante perceber que este foi o ambiente que gerou uma cultura que hoje marca milhões por todo o mundo. As cores vívidas das fotos, das roupas e das pinturas que adornam muitas paredes são um eco do profundo positivismo jamaicano, uma marca da sua cultura singular.
Embora seja uma festa para os olhos, «Dancehall» não é um livro só para ver: os textos de Lesser enquadram a acção captada em película, vão fundo na análise histórica e social de uma época muito particular para a cultura jamaicana. Estas fotos situam-se na mesma década de 80 que haveria de consagrar os desenvolvimentos criados na ilha – os «dubs» nos lados B dos maxis de house, as «extended versions», o hip hop, a paixão pelos graves e a ascenção dos produtores como magos de estúdio. Uma década que na Jamaica impôs códigos visuais diferentes, longe dos 80 americanos de «Regresso ao Futuro» dos jogos de arcada e da explosão do walkman.
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(Texto publicado originalmente na revista Parq)
PS: Há meses que ando a dilatar a minha colecção de dancehall com pérolas editadas na VP com produções de iluminados como King Jammy ou Lenky. A revista The Wire publicou aliás um incrível Primer sobre este género, destacando muitos dos produtores cujos álbuns na VP andam nas Cash Converters por um euro. Sempre que passo pela de Benfica, não deixo de trazer mais meia dúzia de poderosos ritmos digitais jamaicanos.
ah safado a cash anda a render e nao me dizias ahah. o segredo é a alma do negocio. ja nao vou la ha que tempos :(
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