A ideia de que a nova escola hip hop só se define enquanto negativo da escola original – a velha! – é ridiculamente absurda. Na sua passagem pelo clube Pitch do Porto no âmbito de uma Info Session da Red Bull dedicada ao Cut n’ Paste, Steve Stein, mais conhecido por Steinski, assinou um intenso set a partir de um artilhado laptop decorado com autocolantes da Creative Commons de onde debitava rajadas sucessivas de MP3 que uniam os muito distantes universos de Herman Kelly e DJ Marlboro. Só mesmo os guardiões do centro comercial da nova escola hip hop é que não percebem: o absurdismo delicioso de Lil’ Wayne não é caso singular num devir histórico que conta com Kool Keith ou Quasimoto; e até mesmo as batidas paranoicamente viciantes de “Lollipop” ou “A Milli” têm uma insuperável dívida de gratidão perante o trabalho pioneiro de gente como Lenky ou Bobby Digital (e não me refiro ao desastrado alter-ego de Rza). A recusa da memória em detrimento do que é absolutamente novo tem apenas uma consequência – a eliminação do lado cultural de um género. Essa insistência no romper de laços – que é unilateral e surge do lado do presente em relação ao passado e nunca o contrário – parece ter como objectivo único uma espécie de reset da memória. Mas acreditar que tudo começa agora é um erro tão tremendo como acreditar que tudo terminou em 1992 quando o bom doutor editou “The chronic”.
Em 1983, Steve Stein convenceu o seu amigo Douglas Di Franco (Double Dee) a participar num projecto de elaboração de uma remistura para o tema “Play that beat mr dj” de G.L.O.B.E. & Whiz Kid. No júri que escolheria o vencedor do desafio lançado pela Tommy Boy estavam Afrika Bambaataa e Jellybean Benitez, dois importantes protagonistas da emergente cultura hip hop. “The Payoff Mix” conseguiu o primeiro lugar sem dificulades, obtendo aplausos unânimes por parte dos membros do júri. Nos cinco minutos e vinte e quatro segundos desse momento fundador da série de três lições que se revelariam visionárias estão ideias decisivas para se compreenderem as três últimas décadas de criação. Mais importante do que o facto de Stein e Di Franco não terem sido dotados das mesmas doses de melanina que a maior parte dos habitantes de South Bronx é a sua capacidade extrema de transformar cada uma das suas criações num depósito de marcas aurais de uma extensíssima cultura pop.
Em 1983, Double Dee & Steinski uniram os universos da rádio e das block parties, da televisão e do cinema, do hip hop e do disco, do funk e do electro, assumindo-se como herdeiros de uma tradição que se estendia para lá do Bronx até aos pioneiros da manipulação de fita magnética – e só aí encontrava-se uma linha que unia a academia de Pierre Schaeffer, o laboratório de Delia Derbyshire e as pretensões pop da dupla Dickie Goodman e Bill Buchanan que assinou o “novelty record” “Flying Saucer”: “We interrupt this record to bring you a special bulletin. The reports of a flying saucer hovering above the city have been confirmed.”
Mesmo quando o hip hop gritava “agora!”, Steinski e Double Dee perceberam que as possibilidades abertas pela manipulação de fita e um generoso espírito arquivista serviam um propósito maior. As Lessons de Double Dee & Steinski – a inaugural “Payoff Mix” que lhes valeu o prémio da Tommy Boy e as subsequentes “James Brown Mix” e “The history of hip hop” – eram na verdade um comentário a uma cultura nascente que entendiam ser não apenas fruto de um presente em ebulição, mas de um longo processo histórico que abraçava a ideia de colagem – de pedaços de fita, de pedaços de história, de pedaços de música…
Apesar de terem as suas criações confinadas a rodelas de vinil de formato promocional e circulação limitada, Double Dee e Steinski viram o culto crescer ao longo dos anos. Cut Chemist e Dj Shadow, sem se conhecerem ainda, criaram ambos uma “Lesson 4” que pretendia continuar a história e adoptar um mesmo olhar generosamente inclusivo sobre a história do hip hop que nas mãos dessa nova geração de djs passou a explorar ligações ao rock psicadélico, ao jazz mais livre ou aos grooves do Brasil. Para estes manipuladores, a memória nunca teve balizas – pensem em Steinski a tocar baile funk no Pitch ou Shadow a divulgar o hiphy no Lux – e sempre procurou o futuro. Então, afinal de contas, e como o próprio Steinski pergunta no título da há muito aguardada antologia das suas obras – “What does it all mean?” Simples: a memória é livre, não obedece a códigos de direitos de autor e navega por todas as águas. Essa liberdade de movimentos é, em si mesma, um comentário tremendo a uma sociedade que se agarra cegamente a um código de autor elaborado antes da Internet e das novas tecnologias terem redimensionado o mundo. Não é acidente este crucial disco sair na mesma illegal art que lançou “Feed the animals” de Girl Talk… “Sampling is not a crime”, diz o bumper sticker de Steinski.
(Texto publicado na última edição da revista Op., # 27)
domingo, 19 de abril de 2009
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Muitas notas para tirar daqui, muito bom. Eu concordo que existam bastantes "forças de bloqueio" (?) em relação ao Lil'Wayne. Contra mim falo, porque ainda não percebo o trabalho dele. Pode ser.
ResponderEliminarPor outro lado, gosto do The-Dream, como gosto dos Lemon Jelly quando, também, se envolvem na samplagem.
Sei que se não fosse o sampling não estávamos aqui, acho.
Talvez não esteja tudo perdido para o meu lado. :)
Gaudio, verifica lá no Blitz que inclui os Melhores de 2008 a entrada sobre o Lil Wayne...
ResponderEliminarLol
ResponderEliminarMesmo que a evidência o pareça indicar, juro que não sou guardião de templo algum (todos o negam, não é?).
Timbaland, Pharrell, The-Dream também, mas menos, gosto. :)
Agora vou ali acima ouvir o Sr, Franco. :)
Obrigado
1 abraço