Mais do que umbilical, a relação do jazz com África é espiritual. Em 1966, LeRoi Jones (hoje Amiri Baraka) escreveu «o jazz, tanto o que é mais europeu, popular ou de vanguarda, ou o jazz que é mais negro, continua a fazer referência a um central corpo de experiência cultural». No mesmo ensaio – de título «The changing same (r&b and new black music)» - Jones indica que «a linha que se pode traçar, como tradição musical, é o que nós como povo compreendemos e vamos passando, da melhor forma que sabemos. A forma de chamada e resposta de África nunca nos abandonou enquanto modo de expressão musical». África está, portanto, ligada ao jazz desde o momento zero exactamente porque, como indica LeRoi Jones, há uma experiência cultural que é inseparável da sua invenção e da sua prática.
A ligação entre o grande continente negro e o jazz adquiriu, no entanto, especial significado quando a afirmação da identidade afro-americana se tornou mais veemente, durante os complexos anos do Civil Rights Movement. De repente, os fatos negros que pareciam servir de uniforme aos boppers deram origem a vestes mais conotadas com os libertários tempos que os anos 60 trouxeram. A roupa que passou a vestir os corpos era apenas, claro, um pormenor numa revolução mais interior e mais funda. Jean-Louis Comolli definiu o momento de forma precisa num debate organizado pela Jazz Magazine para discutir o impacto da passagem de Sun Ra por Paris em finais de 1971. Esse debate é citado pelo biógrafo de Sun Ra, John F Szwed, em «Space is the place – The lives and times of Sun Ra»: explica Comolli que a experiência foi interessante por ilustrar «uma invenção de África por negros de Harlem e de outros sítios. Mas trata-se de uma África mítica, uma construção.»
A ligação a uma África ideológica, imaginada – espiritual – de músicos como Sun Ra, Pharoah Sanders, os Art Ensemble of Chicago ou, entre tantos outros, John Coltrane afirmou-se como parte de um processo de redescoberta das raízes. A América começou a mudar em finais dos anos 50, com Rosa Parks e Luther King, o que para os músicos mais avançados significava a reconstrução de uma identidade. Coltrane interessou-se por África muito cedo: em 1958, em colaboração com Wilbur Harden, editou «Dial Africa» (que incluía temas como «Gold Coast» ou «Tanganika strut») e em 1960 gravou a peça «Liberia». Mas foi com «Dahomey dance» (do álbum «Olé Coltrane», de 61) e «Africa» (do álbum «Africa/Brass» que marcou a sua estreia na Impulse, também datado de 1961) que as audições de música africana começaram a permear as criações de Trane. Interessado no aspecto rítmico da música africana, Coltrane e Tyner inspiraram-se num álbum de percussão para escrever «Dahomey dance» (Dahomey é o antigo nome da República do Benin) e «Africa» nasceu como um estudo em polirritmia. Bill Cole, autor do livro John Coltrane», refere mesmo que essa peça é «uma tentativa de dar ao ouvinte uma alargada imagem do que África significava para Eric Dolphy e John Coltrane».
E o que África significava era, muito literalmente, liberdade e identidade, ainda que essa visão idealizada não correspondesse muitas vezes à realidade do conturbado período pós-colonial. Ainda assim, Sun Ra afirmava que o seu interesse pelo Egipto (que inspirou também editoras como a Strata East) se devia, muito simplesmente, ao facto de «lidar com a fundação das coisas». Reedições recentes como a por aqui mencionada compilação «Spiritual Jazz» ou «Soul of Africa», da dupla Hal Singer e Jef Gilson (edição original da Chant du Monde em 1974, relançado o ano passado na Kindred Spirits) são apenas uma gota num oceano de criações que, desde o início dos anos 60, fincaram definitivamente África no mapa espiritual, musical e político do jazz.
O fluxo desta ligação entre o jazz e África não era, no entanto, unilateral. Os músicos africanos também souberam ler no jazz o devido espírito revolucionário que servia de forma perfeita a construção de uma realidade pós-colonial. O caso de Fela Kuti é a esse nível bastante sintomático: Fela estudou música em Inglaterra em finais dos anos 50 onde formou os Koola Lobitos, um grupo que numa particularíssima fusão de jazz, rock e highlife procurava de forma evidente os rumos da modernidade. Em 1969, Fela passou um período em Los Angeles onde se envolveu com o radical programa cultural dos Panteras Negras (que também deram guarida a Sun Ra em Oakland, por iniciativa do próprio Bobby Seale). Regressado à Nigéria, Fela rebaptizou o seu grupo como Africa 70 e fundou a sua Kalakuta Republic, uma comuna e estúdio de gravação onde as sessões se estendiam por longos improvisos influenciados pelo aspecto repetitivo do funk, mas também pelas incendiárias improvisações do jazz mais livre. Na Etiópia, músicos como Mulatu Astatke ou Mahmoud Ahmed também olhavam para as possibilidades abertas pela fusão entre o jazz e as sonoridades mais tradicionais como um caminho válido para a construção de uma identidade moderna e progressista. Mulatu foi mesmo o primeiro africano a ser admitido em Berklee, a prestigiada academia musical, em Boston, em 1958. E que músicos como Mulatu ou Fela tenham ingressado em escolas ocidentais ao mesmo tempo que grandes nomes do jazz começavam a descobrir África é apenas uma entrada numa longa lista de pontos de contacto. Jazz e África podem mesmo ser sinónimos.
segunda-feira, 27 de abril de 2009
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