terça-feira, 31 de março de 2009

Roy Ayers & Ramp: groove sofisticado

No seu mais recente lançamento discográfico, Erykah Badu utiliza um original dos RAMP, o Roy Ayers Music Project, para estabelecer o tom para a sua viagem musical logo à partida: “The American Promise”, tema de abertura de “Come Into Knowledge”, transforma-se em “Amerykhan Promise” para mostrar ao que vem a diva neo-soul: interessa-lhe redescobrir a vibração profunda e genuína de uma música que na segunda metade da década de 70 incorporava bagagem do jazz, utilizava ferramentas do futuro e desenhava uma sofisticada utopia de invenção rítmica e lírica. Badu, pois claro, dificilmente poderia ter escolhido melhor momento para se inspirar.
“Come Into Knowledge”, “Vibrations” e “Lifeline” são três faces do prisma Roy Ayers agora reeditadas na série Originals da Verve. Informado, por um lado, pelas experiências eléctricas de Herbie Hancock e Donald Byrd durante boa parte dos anos 70, e, por outro, pelos avanços que a música popular negra registou em idêntico período – do “psicadelismo” de Sly Stone e Norman Whitfield, ao equilíbrio da mensagem cantada com o groove tal como enunciado nos laboratórios da Motown por Marvin Gaye e Stevie Wonder – Roy Ayers assinou uma obra tão extensa quanto visionária que acaba, no melhor dos sentidos, por ser a perfeita definição da década dos afros e dos saltos de plataforma. E isto não implica que não tenha sobrevivido confortavelmente para lá das margens dessa década, conforme atestado não apenas pelo gesto de Erykah Badu no seu recente “New Amerykah: Part One (4th World War)”, mas também pela referência constante que esses trabalhos merecem por parte da internacional comunidade de djs que animam as pistas de dança mais interessantes.
Aspecto comum de todos os projectos com envolvimento de Roy Ayers é uma certa ideia de sofisticação presente nos arranjos e também uma recusa evidente de alinhar por um certo simplismo pop. As canções dos RAMP são bem sintomáticas nesse aspecto pois são elípticas em termos melódicos e há um certo mistério resultante do uníssono das vozes de Sharon e Sibel. E mesmo em termos líricos há por aqui ousadia em doses reforçadas – ouça-se “Give It”, expansivo momento de afirmação de uma liberdade sexual que, mesmo em 77, ainda era capaz de fazer corar melómanos mais reservados… Os RAMP gravaram apenas um álbum, mas a força de temas como “Come Into Knowledge”, “Give It”, “Daylight”, “The American Promise” ou o hino “Everybody Loves The Sunshine” faz desse solitário registo um clássico desmedido.
No mesmo ano em que Ayers produziu a estreia dos RAMP, o seu projecto Ubiquity editou “Lifeline”, outro portentoso registo de sofisticação e luz. Aliás, o “sunshine” é um elemento metafórico importante na música de Ayers e traduz uma ideia mais subtil do que a mera coloração dos títulos de canções como “Everybody Loves The Sunshine” ou “This Side of Sunshine”, que abre “Lifeline”: para Ayers esta era uma época de vibrante invenção para a música negra, que tinha conseguido um equilíbrio entre a pop e o jazz, a dança e a reflexão, o imediatismo e a sofisticação. Tal como “Come Into Knowledge”, “Lifeline” é um disco que opta sobretudo pelo midtempo, mas em temas como o clássico de clubes “Running Away” ou “Cincinatti Growl”, Ayers prova que sabe acelerar o passo e adaptar as suas “vibes” a uma música mais urgente e pulsante.
Antes de “Lifeline”, “Vibrations” foi o primeiro álbum na dobragem para a segunda metade dos anos 70: em faixas como “Come Out and Play” (com dedo de Edwin Birdsong), o pulso angular do p-funk dos Funkadelic (que já tinham editado um “best of” no ano anterior) informa as operações, injectando músculo num Roy Ayers que parece preferir registos mais “mellow”. Interessante é perceber – em “Vibrations” como em praticamente toda a discografia de Ayers na década de 70 – como o vibrafonista utiliza o estúdio e a orquestra à sua disposição como um único instrumento, extensão da sua personalidade e ferramenta ao serviço de uma visão que parece dedicar-se a fazer resumos da matéria dada na música negra que o rodeava. Em entrevista há um par de anos, Ayers revelava que praticamente vivia no estúdio nesta época e que possui muitas horas de material inédito resultante de uma apertada disciplina de criação. O material publicado nestes discos não possui portanto uma separação nítida, que identifique cada sessão como um momento de criação singular. Pelo contrário, de “Vibrations” para “Lifeline” e daí para os RAMP vai a linha de um constante “work in progress” que traduzia os mais subtis traços de evolução da música negra: do funk para o jazz de fusão e daí para o disco sound de vocação mais orquestral – tudo isto está presente nestes álbuns editados já há três décadas. Podem ter tido um comportamento comercial discreto, mas estes álbuns são marcos de um tempo em que a música negra tinha sede de futuro e o construía em cada linha de baixo, em cada novo som arrancado aos “moogs and arps and things” ou em cada reajuste do espaço conseguido com o processamento de uma voz com uma unidade de delay.


RAMP
Come Into Knowledge
Verve


John Manuel (bateria, percussão); Sharon Matthews (voz); Sibel Thrasher (voz), Nate White (baixo); Landy Shores (guitarra)
Nova Iorque e Los Angeles, 1977

Roy Ayers Ubiquity
Lifeline
Verve


Roy Ayers (vibrafone, piano eléctrico, sintetizadores); Chano O'Ferral (conga & percussão); William Allen (baixo); Philip Woo (piano, piano eléctrico, sintetizadores); Justo Almaro (saxofone tenor); Steve Cobb (bateria); John Mosley (trompete); James Mason, Glenn Jeffrey, Chuck Anthony & Calvin Banks (guitarras); Edwin Birdsong (piano).
Nova Iorque e Los Angeles, 1977

Roy Ayers Ubiquity
Vibrations
Verve


Roy Ayers (vozes, vibrafone, piano acústico e eléctrico, sintetizadores, percussão); Chano O'Ferral (conga & percussão); Chicas (vozes); Steve Cobb (bateria); William Allen (baixo); Philip Woo (piano, piano eléctrico, sintetizadores, harmónica); Justo Almaro (saxofone tenor); John Mosley (trompete); Edwin Birdsong (vozes, string ensemble); Bernard “Pretty” Purdie (bateria) James Mason, Glenn Jeffrey, Chuck Anthony & Calvin Banks (guitarras).
Nova Iorque e Los Angeles, 1976


(texto publicado originalmente na revista jazz.pt)

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