O duplo CD (que em vinil se traduz em quatro apetitosas rodelas) “Nigeria special: modern highlife, afro sounds & nigerian blues 1970-76” representa o mais alto momento do catálogo da Soundway de Miles Cleret. A perspectiva nómada deste arquivista já o conduziu do Ghana ao Panamá e do Benim à Colômbia, paragens que renderam sempre excelentes compilações. A expedição dirigiu-se desta vez à Nigéria do período compreendido entre 1970 e 1976, época dourada de Fela Kuti que a partir da sua Kalakuta Republic em Lagos lançou uma série de ritmadas bombas políticas: “Why black man dey suffer” (1971), “Roforofo fight” (1972), “Afrodisiac” (1973), “Expensive shit” (1975) ou “No bread” (1976) são alguns bons exemplos.
Na sombra de Fela, porém, existia outra Nigéria não alcançada pela língua yoruba onde os dialectos igbo e edo facilitavam uma alternativa de comunicação mais livre da pesada influência dos desenvolvimentos afrobeat testados no laboratório Shrine. Assim, o highlife importado do vizinho Ghana juntamente com influências de soul e rock (muitos destes músicos ganhavam a vida em hotéis a tocar para ocidentais…) ofereciam um template alternativo a que muitos músicos aderiram. Tal como a arqueologia deep funk permitiu compreender em relação à produção norte-americana que o impulso criativo se traduzia frequentemente numa única edição, também na Nigéria muitas destas gloriosas bandas não passavam do lançamento de um solitário single, estando por isso esquecidas há décadas. “Nigeria special” oferece-lhes uma renovada possibilidade de eternidade.
Ao número inaugural da revista “Shook”, Miles explicou que nesta compilação “não há ju ju nem afrobeat” e que a opção foi por olhar antes para “raridades que poderiam existir apenas em obscuras colecções ou na memória das pessoas.” Na verdade, compilações como “Nigeria Special” facilitam a construção de uma memória que em caso contrário não teria tradução concreta.
Os Funkees entregam em “Akula owu onyera” uma visão muito própria do R&B americano guiada pelo que soa a um órgão Farfisa e com a voz encharcada em reverb, o som da modernidade na África Ocidental dos anos 70. Os metais e a guitarra cristalina da Harbours Band em “Kama mosi” já são mais devedores da tradição highlife, enquanto Mono Mono aproveita o break em “Eme kowa iasa ile wa” para divergir para território hendrixiano antes de voltar a colocar os pés na sua África. A diversidade de propostas é estonteante, o que também reafirma a imagem contrária de uma Nigéria a marchar sob um mesmo ritmo na primeira metade dos anos 70.
Na arqueologia, a capacidade de perspectivar civilizações inteiras a partir de fragmentos dispersos tem permitido construir vívidas imagens do passado. O que coleccionadores como Miles Cleret fazem não é muito diferente: por cada tema de músicos e bandas como os Anambra Beats, Celestine Ukwu, Sahara All Stars ou a Nigerian Police Force Band existirão dezenas que nunca conheceremos. “Nigeria Special” permite-nos imaginar ao que soariam.
(texto publicado originalmente no número 26 da revista Op.)
segunda-feira, 9 de março de 2009
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