Mais um número da Blitz, amanhã nas bancas. Entre variadíssimas outras coisas, como podem perceber pelas chamadas de capa, penso que interessará particularmente aos leitores do one for the treble, two for the bass o artigo de evocação da edição do primeiro maxi de hip hop, há 30 anos. Fica aqui um par de parágrafos para aguçar o apetite.
30 anos a arranhar o vinil
O rap era este: «O que tu ouves não é um teste, estou a rimar com a batida / E eu, o groove e os meus amigos vamos tentar fazer-te mexer os pés». Tão estranha era a novidade musical que era necessário esclarecer logo no início de «Rapper’s Delight» por que razão estava um tipo a falar em vez de cantar em cima de um tema disco sound bastante familiar. Para se ter uma ideia da peculiaridade de tal anúncio imagine-se se Chuck Berry ou Johnny Burnette, pioneiros da distorção nas guitarras, tivessem cantado algo como «o que tu ouves não é ruído, estou a tocar guitarra eléctrica distorcida»… A borbulhar no Bronx durante pelo menos meia dúzia de anos antes de «Rapper’s Delight» ser editado, o hip hop tinha agora um veículo que lhe permitiria muito rapidamente ultrapassar as fronteiras do seu South Bronx natal e impor-se como o verdadeiro som de Nova Iorque e da América. «Em 1979, os b-boys e as b-girls receberam um enorme choque», escreveu David Toop no seminal Rap Attack. «Aparentemente vindos de lado nenhum, dois singles foram editados e levaram o hip hop até ao público». Toop, cuja primeira edição de Rap Attack em 1984 o coloca bem próximo do arranque de toda esta história, referia-se a «Rapper’s Delight», claro, mas também a «King Tim III (Personality Jock)» dos Fatback Band.
As incontáveis análises históricas publicadas sobretudo nas últimas duas décadas deixam bem claro que o hip hop teve um nascimento localizado no Bronx, mas não surgiu de geração espontânea: antes dos primeiros discos assumidamente hip hop serem editados, as festas comandadas por pioneiros como Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash socorriam-se de uma enorme variedade de sons e ritmos – rock, jazz, funk, descargas latinas, new wave, electrónica kraftwerkiana ou disco sound eram coordenadas possíveis em qualquer dj set de qualquer block party. E quando um MC subia ao microfone poderia debitar uma lenga lenga inspirada nos recreios da escola («i said a hip hop the hippie the hippie to the hip hip hop, a you dont stop / the rock it to the bang bang boogie say up jumped the boogie to the rhythm of the boogie, the beat») ou ligar-se a uma longa tradição de rimas sincopadas que tinha nítida linhagem africana e raízes na soul (os famosos raps de Isaac Hayes), no rhythm n’ blues (Bo Diddley a fazer canções a partir das «dozens», rimas muito populares nas prisões) ou nas estações de rádio. David Toop dá um exemplo: «Um dos primeiros disc jockeys negros na rádio, Dr Hep Cat, abalava ouvintes da KVET em Austin, no Texas, com as suas rimas malucas: “If you want to hip to the tip and bop to the top / You get some mad threads that just won’t stop”».
«King Tim III (Personality Jock)» anunciava de facto a chegada de um novo som, mas era uma obra completamente diferente de «Rapper’s Delight»: em primeiro lugar, o rap de Tim Washington era típico dos djs de rádio, uma série de frases pensadas para injectar ânimo numa audiência, e o tema era puro disco, uma jam de mais de seis minutos tocada pelo elevado grau de groove que normalmente definia os temas dos Fatback Band. «Rapper’s Delight» era nave de outra galáxia.
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