A editora Jazzman reuniu raridades em “Spiritual Jazz” e aponta os holofotes a um momento subterrâneo da era pós-Coltrane que tanta inspiração tem surtido sobre novas escolas musicais.
Apesar do nome, “herdado” de uma alcunha do seu dono, a editora britânica Jazzman tem-se notabilizado sobretudo como importante depósito da memória soul e funk, tendo editado importantes compêndios de abordagem geográfica ao fenómeno despoletado por James Brown, casos das compilações dedicadas à produção das Carolinas do Sul e do Norte, da Florida, do Midwest e do Texas. Agora, um dos mais recentes lançamentos da Jazzman concentra o olhar sobre o lado mais obscuro do jazz “espiritual”, corrente identificada no período que se seguiu ao “acordar” espiritual de John Coltrane, quando a sua dependência de drogas foi substituída pela manifestação de uma fé interior pan-religiosa que marcaria gravações míticas como “A Love Supreme”.
Esse “spiritual awakening” foi entendido por uma geração de músicos de muitas formas e manifestou-se em exercícios mais “free”, de puro modalismo ou de cruzamentos com outras tipologias mais populares, como aconteceu no chamado Soul Jazz. Num momento em que a própria história da sociedade negra americana era tocada pelos espíritos livres de gente como Martin Luther King ou Malcolm X, a música soube olhar para lá das margens do bop e alargar as suas fronteiras para encontrar o impulso libertário resultante da implosão de convenções estruturais (Sun Ra a reinventar a big band), para olhar para os avanços nos domínios mais populares da música (Miles a ouvir Sly Stone), para partir à descoberta de raízes culturais calcinadas pelo tempo (Coltrane, Pharoah Sanders e tantos outros a olharem para África) ou simplesmente para expandir horizontes religiosos, culturais e musicais (Alice Coltrane, Yusef Lateef ou John Mayer e Joe Harriott a descobrirem a Índia).
Jazzman Gerald, o compilador de “Spiritual Jazz”, faz parte de um alargado movimento internacional responsável pelas “escavações arqueológicas” que permitiram não apenas redescobrir a América que existia na sombra de James Brown, mas também a África extra-Fela Kuti (a atenção dada pela Soundway à Nigéria nos últimos meses tem rendido incríveis volumes de afrobeat, highlife e afro-rock), o complexo universo latino (atenção ao catálogo da Vampi Soul), o intenso espírito jamaicano (a Soul Jazz é aqui incontornável) ou a música inventada em estúdio para animar cinema e televisão (o catálogo da Trunk é precioso nesse ponto). O passado desenterrado por todos estes compiladores ressurge após dedicadas pesquisas em arquivos e colecções, atribuladas viagens até continentes exóticos e incontáveis horas de pesquisa em armazéns perdidos no meio do nada onde os resultados de uma vontade expressiva do passado ficaram muitas vezes encerrados durante décadas.
A compilação “Spiritual Jazz” não pretende procurar pontos de contacto entre as sensibilidades enumeradas acima para desenhar as linhas de uma escola, mas antes revelar como a espiritualidade de uma época marcada pela Guerra do Vietname, de um lado, e pela luta pelos Direitos Civis, de outro, inspirou muitos músicos que nunca se conseguiram impor no mundo do jazz: ou porque as edições que criaram eram demasiado caseiras e amadoras, ou porque funcionavam à margem do próprio circuito industrial do jazz (no sentido do circuito de clubes e editoras estabelecidas). Nomes como Morris Wilson Beau Belle Quintet, Ndikho Xaba & The Natives, The Frank Derrick Total Experience, Hastings Street Jazz Experience, ou o Ohio Penitentiary 511 Jazz Ensemble não são dos mais familiares, mas produziram música intensamente vibrante aberta às possibilidades de todos os cruzamentos – com África, com as estruturas mais free ou com as escalas derivadas do pulsar latino. Em comum terão uma vontade de elevação acima do conturbado tempo que as viu surgir, um desejo de superação que tem implicações espirituais, claro, mas também políticas e sociais.
“Spiritual Jazz” surge acompanhada de detalhadas notas de capa, com reproduções das capas dos artefactos originais que continham esta música vibrante, a mesma que está na base de tantos exercícios contemporâneos: dos Jazzanova aos 4 Hero e Two Banks of Four passando por praticamente tudo o que Carlos Niño faz, sobretudo com o colectivo To Build an Ark, pela imensa obra de Madlib (o Yesterdays New Quintet e “tudo” o que em torno dele orbita) e pelas projecções astrais da Cinematic Orchestra de Jason Swinscoe, para dar apenas alguns dos mais óbvios exemplos.
(e retoma-se aqui a publicação da série de textos que tenho vindo a assinar na Jazz.Pt)
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